sábado, 12 de fevereiro de 2011

São demais os perigos desta vida

Carta de resposta ao meu irmão mais velho:

Querido Fernando, meu irmão mais velho,
É com muito agrado que recebo e leio a tua carta. No meio da tua (e de todos os demais) ausência, as tuas palavras confortam-me. É provavelmente a tua mais sentimental e autêntica carta. E perdoa-me, desde já, se, nesta resposta que te escrevo, começo por falar de mim primeiro.
Sabes bem que prometi a todos, família, amigos, namorada, e, sobretudo a mim próprio, dedicação exclusiva aos estudos, de forma a conseguir transitar este ano e aproximar-me vertiginosamente de terminar o curso.
Foi uma época de exames para não mais esquecer, em que realizei 8 exames no espaço de um mês, repleta de episódios dos quais se destaca um.
Nunca mais me esquecerei do meu primeiro dia de férias de 2007. Dia 27 de Julho de 2007. Por coincidência, defendeste a tua tese e terminaste o teu curso precisamente no dia 26 de Julho de 2010, tendo atingido a alegria e a liberdade também num dia 27. Conheço-te tão bem que não acredito em coincidências na tua vida.
 A muita vontade de ir para o Algarve, aliada à consciência tranquila do dever cumprido, era a mistura certa para umas boas férias. Nesse mesmo dia ao final da tarde, por telefonema do Pai na Faculdade, a pauta já havia sido publicada e as notícias não eram boas.
Fernando José Rosário de Vasconcelos Arrobas da Silva tinha à frente da sua pauta “reprovado”. Desta vez com 9,17. O desconsolo tornou-se infinito, as lágrimas nos olhos também, a vontade de já não ir de férias era maior do que, a de dez minutos antes, de ir. Não havia quem me consolasse.
É verdade, e tu sabes, que acabei por ir de férias na mesma, com uma tristeza escondida debaixo de um falso sorriso que ia de orelha a orelha. Muita gente nem percebeu, mas eu sei bem do que me lembrei todos os dias. Um ano perdido a fazer uma disciplina.
A falta de confiança, as dúvidas de estar no curso certo, tudo era motivo para perturbação e estragar a paz que sentia que merecia após um ano desta dimensão.
Este ano, felizmente, por tratar-se de um ano de transição, em virtude deste esperançado e já com tantos caprichos Processo de Bolonha, a Faculdade, a pedido dos alunos, marcou uma época de exames especial em Setembro. A força era pouca, mas era uma nova oportunidade. E a força recuperaria nas férias.
Supostamente ainda teria mais uma oportunidade, com o estatuto de dirigente associativo, mas este foi-me retirado por ser Presidente de Mesa e não um dos 24 (!) da Direcção. Como tal, apenas teria Setembro.
Não tinham sido os meses de férias a fazer-me perder o que tinha a certeza que sabia. Eu sentia que estava a fazer certo e continuei. Tinha pedido até a uns colegas, um já licenciado e outro que tinha passado em Junho na época normal, para passarem alguns dias comigo para me apontarem erros e ajudarem-me a melhorar, ao que sempre me disseram que era abnegado, tinha vontade e tudo o que fazia era bem feito.
Começou o exame e este decorreu de forma psicologicamente arrasadora. Queria estar concentrado e o Professor observava-me abanando a cabeça com movimentos de “Não”. Senti, durante todo o exame, que o futuro estava traçado.
Foi numa sexta-feira. Pensei que teria pelo menos o fim-de-semana descansado. Mas, uma hora depois do exame, ao sair da Faculdade uma Assistente chamou-me para ir ao Gabinete do Professor. Fui e foi-me confirmado que havia chumbado. Jamais esquecerei a minha figura em pé e a do Professor sentado sem nunca me olhar nos olhos, com a cabeça virada para o chão, simplesmente dizendo que não me poderia passar.
Um dia, quando Bernard Defrance, conhecido Professor de naturalidade francesa de psicopedagogia e de filosofia da educação, se despiu numa sala do ensino secundário com uma intenção essencialmente filosófica, encontrou logo almas caridosas que alertaram a reitoria, o ministério, a imprensa e que fizeram desencadear uma verdadeira caça às bruxas. Mas os professores que não preparam as aulas, que fazem uma avaliação destruidora, que mantêm relações sádicas com certos alunos, que ostentam as suas depressões ou que cada ano fabricam fracassos anunciados, esses professores podem dormir descansados, não vão contra os bons costumes, não fazem senão fazer o seu trabalho.
Relatar o que vivemos pode turvar-nos a perspectiva crítica, mas o meu entendimento, e daí falar disso aqui mesmo, é “antes pelo contrário”.
Nesse dia, pensei que a justificação técnica do que estava errado, para melhorar da próxima, fosse um objectivo da conversa, mas saí da sala apenas com o conhecimento de que “não podia tratar doentes”. Doentes esses que, hoje em dia, tanto admiram e reconhecem as tuas qualidades e o teu trabalho. E, como dizes, de forma apaixonada acerca do trabalho que executas, ser dentista é ser médico, psicólogo, engenheiro, pintor, escultor e arquitecto.
Sabes que dediquei algum tempo a ser representante estudantil. Podia não conseguir mudar o mundo real, mas senti quando aceitei que devia e tinha de aproveitar uma sala cheia para a fazer pensar. Esse disparate característico, onde não se é pago para se interessar pelos problemas dos outros.
Magoou-me mais isto que me aconteceu precisamente porque fiz intervenção em tempo útil, ultrapassando, na altura, inércias e bloqueios que esgotaram as minhas energias, pessoais e institucionais. E quando fui eu que precisei ninguém lá esteve. Estás agora tu.
E chegou a vez de, nesta carta, estar eu agora aí para ti. Chamemos-lhe a teoria das duas faces: a face que avisa e prevê o que vai acontecer. E os ouvidos são surdos. E a face que sofre aquilo para que avisou. E em que as palavras ditas podem apagar-se, mas nunca mais se podem alterar as palavras gravadas.
A palavra paixão é definida como um sentimento forte e sem razão, mas transitório. Para bem e para o mal, verdade te digo, ainda muitas mais situações parecidas virão e na minha companhia te prometo.
Eu consigo entender pela tua forma de escrever que te tornaste demasiado metódico e racional. Mas com o desejo de ser emocional. És assim para te defenderes não sei bem de quê. E de quê, poderás até tu perguntar. Isso eu não sei e provavelmente tu também já não.
És demasiado novo para dizer que a vida te ensinou a ser assim. Dá utilidade a ti mesmo no que a mim me escreveste. Estar de fora é sempre mais fácil, mas, no imediato, antes de naturalmente voltar a errar,  depois de todos os excessos e de todas as ilusões agora é preciso ser prudente. Mas, se me permites, como teu irmão mais novo e inexperiente, dar-te um conselho, deves, sobretudo recusar o arrependimento.

Recusar não é esquecer, não é negar, não é omitir. E muito menos é virar as costas. Recusar é continuar a tentar imaginar outros destinos. Ao início de um sonho, não tem sempre de terminar um final inglório.
Seguido ao conselho, permite-me ainda uma confissão. Toda a gente pode pensar duas vezes nas coisas, mas nem sempre o faz, e eu não sei como, mas também frequentemente o faço.
Em mar calmo, as atribuições de um comandante de navio não são plenamente postas à prova, mas devem estar disponíveis porque a tripulação conta com elas caso surja um acidente crítico. Em mar calmo, o navio quase pode passar sem comandante, enquanto que, se subitamente surge a tempestade, a sobrevivência depende da sua experiência, do seu sangue-frio, da sua capacidade de analisar e decidir numa situação complexa, difícil, que não admite margem para erros.
O futuro ainda demora muito tempo. “Não é por avançarmos os relógios que o futuro chega mais cedo” (Reinhart Koselleck). Mas tu és o meu Comandante e o meu exemplo.só a pouco tp é k comecei a conhecer te e a perceber k afinal n es assimsabes eu acho k es assim pa t defenderes n sei d que E é por isso que considero particularmente engraçada a parte final que me escreves, pois sei que ainda hoje, a todos quanto te perguntam o que se passou naquele dia do fatídico exame, respondesFui eu que fiz tudo mal feito.” Nunca dás o sabor, e noutras situações a responsabilidade, aos outros de terem sido eles os responsáveis por algo que surtiu errado. Eu acho que isso é uma característica que edifica o carácter.
Para te entender bem, é preciso ver para além da poeira dos dias que correm e perceber que só por imaginar a verdade, não podemos julgar que a possuímos. Existem muros altos em tudo. Que a mulher seja em princípio alta/ Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros. E eu tenho esta tarefa de um ano inteiro de espera angustiante de forma a realizar uma disciplina para que a minha vida possa, simplesmente, continuar.
São vitórias e são desilusões. Como diz Vinicius de Moraes, teu ídolo e que tantas vezes citas e repetes, são demais os perigos desta vida…para quem tem paixão.
Do teu irmão, que igual a ti se quer tornar,
Fernandinho
Biblioteca da Faculdade, 20 de Setembro de 2007