Numa estrada, por trás das grades de um enorme jardim, no fundo do qual aparecia a brancura de um lindo castelo batido pelo sol, havia uma criança terna e bela, vestida com essas roupas do campo tão cheias de coqueteria.
O luxo, a indolência e o espetáculo habitual da riqueza tornam essas crianças tão bonitas que parecem feitas de outra massa que não a dos filhos da mediocridade ou da pobreza. Ao lado dela, sobre a grama, um brinquedo esplêndido, tão viçoso quanto o dono, envernizado, dourado, vestido de púrpura, recoberto de plumas e vidrinhos. Mas a criança não ligava ao seu brinquedo predilecto, antes olhava isto:
Do outro lado da grade, na estrada, entre os cardos e urtigas, estava uma outra criança, suja, mirrada, fuliginosa, um desses párias de fedelhos em que o olho imparcial, se o desbastasse da repugnante pátina da miséria, como o olho do conhecedor adivinha uma pintura ideal por debaixo do verniz de sejeiro, descobriria a beleza.
Através dessas grades simbólicas entre dois mundos, a estrada e o castelo, a criança pobre mostrava à rica o seu brinquedo, que a segunda examinava avidamente, como um objecto raro e desconhecido. Ora, esse brinquedo agastado pelo sujinho, que o sacudia e balançava numa caixa gradeada era um rato vivo! Os pais, certamente por economia, haviam extraído o brinquedo da própria vida.
E as duas crianças riam fraternalmente uma para a outra, com dentes de brancura igual.
Charles Baudelaire
O Chile, apelidado por muitos de país de políticos e escritores, foi ímpar na proliferação de intelectuais através das suas tertúlias. Imaginando-nos sentados naquelas duas cadeiras, passemos tardes em esplanadas e cafés cheios em Valparaíso, cidade magnífica do Chile, convivendo e relembrando grandes intelectuais e senhores do Mundo, declamando poemas ou literatura, contando histórias e escrevendo... na procura de que se faça luz nas nossas cabeças e se criem novos ideais. Sentem-se aí.
sábado, 19 de fevereiro de 2011
Dentes de brancura igual
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Conversas entre...,
Sorriso e Literatura
sábado, 12 de fevereiro de 2011
São demais os perigos desta vida
Carta de resposta ao meu irmão mais velho:
Querido Fernando, meu irmão mais velho,
É com muito agrado que recebo e leio a tua carta. No meio da tua (e de todos os demais) ausência, as tuas palavras confortam-me. É provavelmente a tua mais sentimental e autêntica carta. E perdoa-me, desde já, se, nesta resposta que te escrevo, começo por falar de mim primeiro.
Sabes bem que prometi a todos, família, amigos, namorada, e, sobretudo a mim próprio, dedicação exclusiva aos estudos, de forma a conseguir transitar este ano e aproximar-me vertiginosamente de terminar o curso.
Foi uma época de exames para não mais esquecer, em que realizei 8 exames no espaço de um mês, repleta de episódios dos quais se destaca um.
Nunca mais me esquecerei do meu primeiro dia de férias de 2007. Dia 27 de Julho de 2007. Por coincidência, defendeste a tua tese e terminaste o teu curso precisamente no dia 26 de Julho de 2010, tendo atingido a alegria e a liberdade também num dia 27. Conheço-te tão bem que não acredito em coincidências na tua vida.
A muita vontade de ir para o Algarve, aliada à consciência tranquila do dever cumprido, era a mistura certa para umas boas férias. Nesse mesmo dia ao final da tarde, por telefonema do Pai na Faculdade, a pauta já havia sido publicada e as notícias não eram boas.
Fernando José Rosário de Vasconcelos Arrobas da Silva tinha à frente da sua pauta “reprovado”. Desta vez com 9,17. O desconsolo tornou-se infinito, as lágrimas nos olhos também, a vontade de já não ir de férias era maior do que, a de dez minutos antes, de ir. Não havia quem me consolasse.
É verdade, e tu sabes, que acabei por ir de férias na mesma, com uma tristeza escondida debaixo de um falso sorriso que ia de orelha a orelha. Muita gente nem percebeu, mas eu sei bem do que me lembrei todos os dias. Um ano perdido a fazer uma disciplina.
A falta de confiança, as dúvidas de estar no curso certo, tudo era motivo para perturbação e estragar a paz que sentia que merecia após um ano desta dimensão.
Este ano, felizmente, por tratar-se de um ano de transição, em virtude deste esperançado e já com tantos caprichos Processo de Bolonha, a Faculdade, a pedido dos alunos, marcou uma época de exames especial em Setembro. A força era pouca, mas era uma nova oportunidade. E a força recuperaria nas férias.
Supostamente ainda teria mais uma oportunidade, com o estatuto de dirigente associativo, mas este foi-me retirado por ser Presidente de Mesa e não um dos 24 (!) da Direcção. Como tal, apenas teria Setembro.
Não tinham sido os meses de férias a fazer-me perder o que tinha a certeza que sabia. Eu sentia que estava a fazer certo e continuei. Tinha pedido até a uns colegas, um já licenciado e outro que tinha passado em Junho na época normal, para passarem alguns dias comigo para me apontarem erros e ajudarem-me a melhorar, ao que sempre me disseram que era abnegado, tinha vontade e tudo o que fazia era bem feito.
Começou o exame e este decorreu de forma psicologicamente arrasadora. Queria estar concentrado e o Professor observava-me abanando a cabeça com movimentos de “Não”. Senti, durante todo o exame, que o futuro estava traçado.
Foi numa sexta-feira. Pensei que teria pelo menos o fim-de-semana descansado. Mas, uma hora depois do exame, ao sair da Faculdade uma Assistente chamou-me para ir ao Gabinete do Professor. Fui e foi-me confirmado que havia chumbado. Jamais esquecerei a minha figura em pé e a do Professor sentado sem nunca me olhar nos olhos, com a cabeça virada para o chão, simplesmente dizendo que não me poderia passar.
Um dia, quando Bernard Defrance, conhecido Professor de naturalidade francesa de psicopedagogia e de filosofia da educação, se despiu numa sala do ensino secundário com uma intenção essencialmente filosófica, encontrou logo almas caridosas que alertaram a reitoria, o ministério, a imprensa e que fizeram desencadear uma verdadeira caça às bruxas. Mas os professores que não preparam as aulas, que fazem uma avaliação destruidora, que mantêm relações sádicas com certos alunos, que ostentam as suas depressões ou que cada ano fabricam fracassos anunciados, esses professores podem dormir descansados, não vão contra os bons costumes, não fazem senão fazer o seu trabalho.
Relatar o que vivemos pode turvar-nos a perspectiva crítica, mas o meu entendimento, e daí falar disso aqui mesmo, é “antes pelo contrário”.
Nesse dia, pensei que a justificação técnica do que estava errado, para melhorar da próxima, fosse um objectivo da conversa, mas saí da sala apenas com o conhecimento de que “não podia tratar doentes”. Doentes esses que, hoje em dia, tanto admiram e reconhecem as tuas qualidades e o teu trabalho. E, como dizes, de forma apaixonada acerca do trabalho que executas, ser dentista é ser médico, psicólogo, engenheiro, pintor, escultor e arquitecto.
Sabes que dediquei algum tempo a ser representante estudantil. Podia não conseguir mudar o mundo real, mas senti quando aceitei que devia e tinha de aproveitar uma sala cheia para a fazer pensar. Esse disparate característico, onde não se é pago para se interessar pelos problemas dos outros.
Magoou-me mais isto que me aconteceu precisamente porque fiz intervenção em tempo útil, ultrapassando, na altura, inércias e bloqueios que esgotaram as minhas energias, pessoais e institucionais. E quando fui eu que precisei ninguém lá esteve. Estás agora tu.
E chegou a vez de, nesta carta, estar eu agora aí para ti. Chamemos-lhe a teoria das duas faces: a face que avisa e prevê o que vai acontecer. E os ouvidos são surdos. E a face que sofre aquilo para que avisou. E em que as palavras ditas podem apagar-se, mas nunca mais se podem alterar as palavras gravadas.
A palavra paixão é definida como um sentimento forte e sem razão, mas transitório. Para bem e para o mal, verdade te digo, ainda muitas mais situações parecidas virão e na minha companhia te prometo.
Eu consigo entender pela tua forma de escrever que te tornaste demasiado metódico e racional. Mas com o desejo de ser emocional. És assim para te defenderes não sei bem de quê. E de quê, poderás até tu perguntar. Isso eu não sei e provavelmente tu também já não.
És demasiado novo para dizer que a vida te ensinou a ser assim. Dá utilidade a ti mesmo no que a mim me escreveste. Estar de fora é sempre mais fácil, mas, no imediato, antes de naturalmente voltar a errar, depois de todos os excessos e de todas as ilusões agora é preciso ser prudente. Mas, se me permites, como teu irmão mais novo e inexperiente, dar-te um conselho, deves, sobretudo recusar o arrependimento.
Recusar não é esquecer, não é negar, não é omitir. E muito menos é virar as costas. Recusar é continuar a tentar imaginar outros destinos. Ao início de um sonho, não tem sempre de terminar um final inglório.
Seguido ao conselho, permite-me ainda uma confissão. Toda a gente pode pensar duas vezes nas coisas, mas nem sempre o faz, e eu não sei como, mas também frequentemente o faço.
Em mar calmo, as atribuições de um comandante de navio não são plenamente postas à prova, mas devem estar disponíveis porque a tripulação conta com elas caso surja um acidente crítico. Em mar calmo, o navio quase pode passar sem comandante, enquanto que, se subitamente surge a tempestade, a sobrevivência depende da sua experiência, do seu sangue-frio, da sua capacidade de analisar e decidir numa situação complexa, difícil, que não admite margem para erros.
O futuro ainda demora muito tempo. “Não é por avançarmos os relógios que o futuro chega mais cedo” (Reinhart Koselleck). Mas tu és o meu Comandante e o meu exemplo.só a pouco tp é k comecei a conhecer te e a perceber k afinal n es assimsabes eu acho k es assim pa t defenderes n sei d que E é por isso que considero particularmente engraçada a parte final que me escreves, pois sei que ainda hoje, a todos quanto te perguntam o que se passou naquele dia do fatídico exame, respondes “Fui eu que fiz tudo mal feito.” Nunca dás o sabor, e noutras situações a responsabilidade, aos outros de terem sido eles os responsáveis por algo que surtiu errado. Eu acho que isso é uma característica que edifica o carácter.
Para te entender bem, é preciso ver para além da poeira dos dias que correm e perceber que só por imaginar a verdade, não podemos julgar que a possuímos. Existem muros altos em tudo. Que a mulher seja em princípio alta/ Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros. E eu tenho esta tarefa de um ano inteiro de espera angustiante de forma a realizar uma disciplina para que a minha vida possa, simplesmente, continuar.
São vitórias e são desilusões. Como diz Vinicius de Moraes, teu ídolo e que tantas vezes citas e repetes, são demais os perigos desta vida…para quem tem paixão.
Do teu irmão, que igual a ti se quer tornar,
Fernandinho
Biblioteca da Faculdade, 20 de Setembro de 2007
quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011
O insucesso do sucesso
Carta ao meu irmão mais novo :
Querido Fernandinho,
Escrevo-te sentado na biblioteca da minha antiga e tua actual Faculdade. Não falamos continuadamente como se tinha tornado hábito faz dias ou semanas. Senti, no entanto, que te devo, a ti especialmente, por toda a perseverança, força e coragem que tens demonstrado, uma explicação para o meu desaparecimento, que relato nesta carta.
Aprendi, cedo motivado das mudanças de escola e de casa e mais tarde por outras razões, que a vida no que diz respeito à amizade é como um funil. O conta-gotas é permanente. Muitos à tona, poucos no final. Desiludir é fácil. Ser desiludido é duro.
Lembro-me que comecei a entender que te estavas a tornar sério e adulto por um dilema qualquer. Ambos éramos de opiniões diferentes, logo cedo começou a discussão. Se no primeiro momento o que contou foi o impacto da sensação, logo em seguida, sucedeu-se a necessidade da reflexão. Embora pomo de discórdia, reconheci, em segredo, algumas ideias de verdade e de autenticidade associadas à linguagem ágil e inventiva.
Durante uns tempos, colegas, sondámos opiniões e procurámos convencer-nos e solidarizámo-nos. A pouco e pouco, o que à primeira vista tinha parecido uma divergência tinha convergências: observação e sentido crítico da actualidade e vontade de agitar “o nosso Mundo”.
Hoje, digo com toda a certeza que a nossa amizade não é apenas um sentimento de ordem emocional. Foi, sobretudo, trabalho de sageza.
E é por isso que sei que és a pessoa certa para entender o que te vou contar.
Longe de mim ter pensado que, de repente, me iria voltar a apaixonar. Apaixonar é, para as gerações do século XXI, um termo demasiado forte e seguramente utilizado com muita cautela. Quanto a mim, que sabes que penso sempre duas vezes relativamente a tudo o que me é dito, não tenho receio de o utilizar, pois é num sentido amplamente lato de “empolgamento” e “despertar de um interesse” que andava perdido. Não uma situação desesperante e avassaladora da alma, como a imbecilidade de muitos faz querer parecer.
Vivi dias que, venha uma vida e a outra, não irei esquecer. Vi o sol da Primavera nascer no Inverno e li Vinicius de Moraes, como nunca havia feito com ninguém. É claro que depois uma semana de afastamento bastou para o sentimento incontrolável se reduzir para um lume brando e quase apagado.
Por isso desdobro este universo recôndito e privado das emoções para uma metáfora que gostava que entendesses.
A esperança que depositaste neste ano lectivo rapidamente ficou gorada ao cantar das Janeiras e do dia de Reis. Ficaste desiludido e magoado. Perguntarmos se foi justo ou injusto não trará nada de diferente. Tens de te manter concentrado nos teus exames, independentemente de não vislumbrar o adiamento de um ano para terminares esse curso ingrato.
Ainda há pouco tempo eu também andei nessa mesma Faculdade e conheces a minha história que aí ficou. Mudou a minha vida. Um processo difícil. Assisti a muita coisa que nunca pensei existir. Sofri repercussões, até que chegou um limite, por coincidência, simultâneo com o último crédito que faltava para terminar.
Felizmente, não me faltou, e a ti também não te falta, família, amigos e pessoas com quem podes contar. Verás, aos poucos, que o mais engraçado é que justamente quanto maior era a fadiga e a desmotivação, maior era a capacidade e a vontade.
Já tens um bom projecto. Marcado pela responsabilidade social e pela vontade de ocupar o espaço público, entendes a educação para a saúde oral como arte para um País melhor e, por isso, tens é apenas de estar orgulhoso e de estar de consciência tranquila com a tua rectidão. E, para lá chegar, ficar desiludido e sofrer faz parte.
Na minha história, eu próprio não entendo como tão rapidamente me deixei envolver e fiquei tão entusiasmado. “Em tudo se deve retirar algum ensinamento”, dirão os mais espertos. Mas, no fundo, achas que eu, com 27 anos, não tinha já aprendido esta lição de não acreditar em rosas de repente e que não sabia que o que fazia era errado? Mas, no meio do desânimo, do marasmo, das vicissitudes e da displicência do dia-a-dia, fez-me sentir vivo e ver novamente que em mim ainda existia afinal algo animado, ingénuo e verdadeiro.
Farto das minha tácticas racionais que me levaram a tantas conquistas demasiado maquinais e alicerçadas em jogos demasiado pensados, desta vez, dediquei-me demais e muito mais cedo do que devia. A isto chama-se o insucesso do sucesso, ou vice-versa.
Actualmente, ao contrário do que era na tua idade, o que mais me atrai já não é só o sorriso ou os olhos e as pernas bem definidas e esguias. É o respeito, a consideração e a falta de egoísmo. E verás que, em todas as esquinas da vida, isso raramente existe. Às vezes, inclusivamente, até dentro de nós próprios.
Na mágoa que se seguiu, eu também, por momentos, perdi a concentração, dormi mal e desesperei na falta de produção na escrita. Contudo, sabes que nós não somos pessoas de cair e não levantar de imediato. O exemplo disso mesmo é que aqui, de novo, escrevo. E, assim, percebi, subitamente, que, tal como tu, não me posso queixar da vida que tenho, mas que nem tudo tem saído perfeito, como quero. Tempo…
Queria que soubesses o que se passou comigo e a razão da minha ausência e talvez pedir-te desculpa se nalgum momento importante e de desespero não estive aí para ti. E a mensagem que te quero deixar nesta semana que terminarás o teu último exame é esta mesma. Seja na vida, no amor ou no trabalho, o nosso prazer deve concentrar-se não no prazer do que já sabemos fazer, mas sim no prazer do que ainda não sabemos fazer bem feito. E, com altos e baixos, continuar a tentar, na esperança de que um dia será perfeito.
Com o mais fraterno dos abraços,
Do teu irmão mais velho
Fernando
segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011
Receita de mulher
As muito feias que me perdoem
Mas beleza é fundamental. É preciso
Que haja qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture
Em tudo isso (ou então
Que a mulher se socialize elegantemente em azul, como na República Popular Chinesa).
Não há meio-termo possível. É preciso
Qu tudo isso seja belo. É preciso que súbito
Tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto
Adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora.
É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que se reflita e desabroche
No olhar dos homens. É preciso, é absolutamente preciso
Que tudo seja belo e inesperado. É preciso que umas pálpebras cerradas
Lembrem um verso de Eluard e que se acaricie nuns braços
Alguma coisa além da carne: que se os toque
Como ao âmbar de uma tarde. Ah, deixai-e dizer-vos
Que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro
Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e
Seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem
Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos, então
Nem se fala, que olhem com certa maldade inocente. Uma boca
Fresca (nunca húmida!) e também de extrema pertinência.
É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos
Despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas, e as pontas pélvicas
No enlaçar de uma cintura semovente.
Gravíssimo é, porém, o problema das saboneteiras: uma mulher sem saboneteiras
É como um rio sem pontes. Indispensável
Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida
A mulher se alteie em cálice, e que seus seios
Sejam uma expressão greco-romana, mais que gótica ou barroca
E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de 5 velas.
Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebral
Levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal!
Os membros que terminem como hastes, mas bem haja um certo volume de coxas
E que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem
No entanto, sensível à carícia em sentido contrário.
É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio
Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!)
Preferíveis sem dúvida os pescoços longos
De forma que a cabeça dê por vezes a impressão
De nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre
Flores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticos
Discretos. A pele deve ser fresca nas mãos, nos braços, no dorso e na face
Mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca inferior
A 37° centígrados podendo eventualmente provocar queimaduras
Do 1° grau. Os olhos, que sejam de preferência grandes
E de rotação pelo menos tão lenta quanto a da Terra; e
Que se coloquem sempre para lá de um invisível muro da paixão
Que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta
Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros.
Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que, se se fechar os olhos
Ao abri-los ela não mais estará presente
Com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá
E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber
O fel da dúvida. Oh, sobretudo
Que ele não perca nunca, não importa em que mundo
Não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade
De pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma
Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre
O impossível perfume; e destile sempre
O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto
Da sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina
Do efêmero; e em sua incalculável imperfeição
Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável.
Mas beleza é fundamental. É preciso
Que haja qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture
Em tudo isso (ou então
Que a mulher se socialize elegantemente em azul, como na República Popular Chinesa).
Não há meio-termo possível. É preciso
Qu tudo isso seja belo. É preciso que súbito
Tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto
Adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora.
É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que se reflita e desabroche
No olhar dos homens. É preciso, é absolutamente preciso
Que tudo seja belo e inesperado. É preciso que umas pálpebras cerradas
Lembrem um verso de Eluard e que se acaricie nuns braços
Alguma coisa além da carne: que se os toque
Como ao âmbar de uma tarde. Ah, deixai-e dizer-vos
Que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro
Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e
Seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem
Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos, então
Nem se fala, que olhem com certa maldade inocente. Uma boca
Fresca (nunca húmida!) e também de extrema pertinência.
É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos
Despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas, e as pontas pélvicas
No enlaçar de uma cintura semovente.
Gravíssimo é, porém, o problema das saboneteiras: uma mulher sem saboneteiras
É como um rio sem pontes. Indispensável
Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida
A mulher se alteie em cálice, e que seus seios
Sejam uma expressão greco-romana, mais que gótica ou barroca
E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de 5 velas.
Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebral
Levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal!
Os membros que terminem como hastes, mas bem haja um certo volume de coxas
E que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem
No entanto, sensível à carícia em sentido contrário.
É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio
Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!)
Preferíveis sem dúvida os pescoços longos
De forma que a cabeça dê por vezes a impressão
De nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre
Flores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticos
Discretos. A pele deve ser fresca nas mãos, nos braços, no dorso e na face
Mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca inferior
A 37° centígrados podendo eventualmente provocar queimaduras
Do 1° grau. Os olhos, que sejam de preferência grandes
E de rotação pelo menos tão lenta quanto a da Terra; e
Que se coloquem sempre para lá de um invisível muro da paixão
Que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta
Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros.
Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que, se se fechar os olhos
Ao abri-los ela não mais estará presente
Com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá
E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber
O fel da dúvida. Oh, sobretudo
Que ele não perca nunca, não importa em que mundo
Não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade
De pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma
Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre
O impossível perfume; e destile sempre
O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto
Da sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina
Do efêmero; e em sua incalculável imperfeição
Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável.
Vinicius de Moraes
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