"Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?" Esta foi a pergunta feita aos Portugueses em referendo a 11 de Fevereiro 2007. A resposta foi, por maioria, «sim» à despenalização do aborto. Os resultados oficiais contaram com 59,25 por cento dos votos no «sim» e 40,75 por cento no «não» e fora da decisão ficaram 56,39 por cento de eleitores, contribuintes para a abstenção.
Aborto é um conceito lato que implica a interrupção da gravidez, que pode ser espontânea ou provocada.
O debate ético em volta deste tema inicia-se nas questões relacionadas com o princípio da vida: as mulheres têm o direito de interromper voluntariamente a gravidez indesejada? Ou é o estado a proibir? Deve o aborto ser permitido em alguns casos e noutros não? Deve o aborto ser legalizado?
Nas principais linhas de argumentação contra a questão do aborto (qual é a questão do referendo?) vêm o facto de a vida ser inviolável e a vida e o ser humano serem um conjunto. Abortar é assassinar.
Por outro lado, na argumentação a favor da questão do aborto (qual é outra vez a questão do referendo?) julga-se que este deve ser permissível porque a sua proibição leva a consequências indesejadas, a autonomia, o direito moral e a escolha ser respeitada.
Todas são insuficientes, pois a partir de que altura do desenvolvimento embrionário se pode conferir o direito vida de forma completa? Até existir esta resposta, nada será certo.
Ninguém pode afirmar que a liberalização da interrupção voluntária da gravidez constitui uma solução que acarreta consigo mais vantagens do que prejuízos. Mas seria a alavanca do direito penal a única coisa que o impedia?
O “não” alega-se pró-vida, mas o “sim”, só porque é antagónico do “não”, não é propriamente “anti-vida”, é “pró-escolha”.
Mas mais do que tudo as campanhas estão a discutir coisas diferentes: sim à despenalização e não à liberalização. São coisas diferentes. Contra o aborto somos todos.
Ambas as campanhas foram, em certa forma, hipócritas (acho que a pergunta inicial quase ninguém a sabia até se deparar com o boletim de voto no dia do referendo) e a que foi menos foi a que ganhou.
Lembro-me que, por altura das eleições autárquicas em 2005, pós-legislativas, pré-Presidenciais, não se falou uma única vez em aborto. Na América, cada vez que acontecia alguma coisa, George W. Bush falava em Aborto: manobra de distracção.
Eu quero acreditar que, em Portugal, foi antes um grande debate. Mas que ainda não terminou.
A prioridade do nosso país e do nosso Governo tem sido de diminuir drasticamente um défice que tarda em querer atingir níveis considerados admissíveis por todos os economistas e em particular pela União Europeia.
Aos “sacrifícios necessários” já anunciados, e, nesta travagem, na área da Saúde, já se deram todo o tipo de cortes, seguindo-se aí certamente mais medidas económicas.
Ao ter “ganho” o “sim” no referendo do aborto, como lógico, os custos do Serviço Nacional de Saúde aumentaram. O orçamento da saúde é o coberto pelos impostos e constitui o esforço financeiro máximo consentido pela riqueza produzida pelo trabalho dos cidadãos, segundo a política fiscal. Onde se irá buscar então o dinheiro para os custos de aborto?
Há uns anos atrás, um ministro da Saúde Francês chegou a afirmar que o seu Ministério não teria o défice que apresentara no ano anterior se todos os doentes “terminais” assistidos nas UCI (Unidade Cuidados Intensivos) tivessem morrido, oito dias antes, por interrupção dos cuidados. Foi o primeiro sinal de frieza da Economia.
Sem sectarismos, será que a seguir vem mesmo a eutanásia?
A eutanásia “é a morte deliberada e intencional de uma pessoa, a seu pedido, executada por outra pessoa que acolheu o pedido e decidiu dar-lhe satisfação”. Uma prática proibida em Portugal, como se sabe.
Na eutanásia os principais valores em causa são a vida humana. Existe uma grande Argumentação pró-eutanásia: primeiro, porque é a pedido do doente e desde as bases do Principialismo que se deve reger o respeito pela autonomia. Mas até Kant dizia: “a autonomia não pode ser auto destrutiva” e acção médica é o bom controlo dos fármacos, e uma situação deste tipo suscita num profissional de saúde um conflito de deveres entre o dever médico de respeitar a vida e o dever médico de aliviar o sofrimento. O argumento “se a medicina, criou o problema a medicina que o resolva” é fraco, pois os médicos (alguns) são responsáveis por muita coisa, mas não são responsáveis por existirem doenças.
Por seu turno, a argumentação contra eutanásia incide sobretudo no respeito pela vida e proibição de matar. Mas autonomia significa liberdade de escolha e o valor da vida tem de ser entendido em situação.
Todo o sofrimento não pode ser controlado (0 a 20 % continua com dor incontrolável), como tal, argumentar melhores cuidados paliativos, quando Erwing em 1930 já separou o cuidar do curar, levando à desumanização dos cuidados de saúde, também não parece a melhor solução.
Existe, de facto, argumentação contra e a favor da eutanásia e cada uma delas apresenta ainda contra-argumentação, sendo todas elas alicerçadas numa coisa: a aceitação da vida como um bem “auto-disponível” ou não.
De uma coisa, pelo menos até hoje, estamos todos de acordo, o acto de morte não pode ser por simples decisão médica, mas muito menos por simples decisão administrativa. Pois bem, a eutanásia que seja mais um dilema, não mais uma medida económica.
3 comentários:
Caro Fernando,
tenho vindo espreitar o seu blog de quando em quando e, confesso, nunca saio desiludido. É sempre refrescante ver um jovem que não se limita à sua área de estudos ou a crónicas de festas e bebedeiras, mas que demonstra um gosto tão especial pela cultura.
Quanto a esta crónica, não podia deixar de a comentar por este ser um tema tão especial para mim. Antes de mais, queria perguntar-lhe que significado tem para si a vida? Na verdade, tudo reside nesta questão, e não na liberdade de escolha ou em deveres hipocráticos, como muitos julgam. Se a vida não tiver sentido, não há necessidade de a proteger ou defender. Nesse caso, cada qual faz com ela o que achar melhor, desde que não interfira com a vida dos outros. Contudo, se a vida é um dom que nos foi dado por um Deus de amor, como eu e tantas outras pessoas acreditamos, então não pode ser desrespeitada, porque encerra em si um acto de amor e confere a dignidade a cada homem. Dessa forma, torna-se necessário protegê-la sempre, mesmo daqueles que não percebem o seu sentido. Este é o verdadeiro argumento que para mim faz sentido.
Espero que continue a escrever com a mesma frescura e que me perdoe este meu desabafo.
Francisco António
Caro Francisco António,
Antes de mais, muito lhe agradeço o seu cuidado de me deixar um comentário.
A definição de cultura não é uma realidade pacífica. Como escreveu Carlos Drummond de Andrade “Perder tempo em aprender coisas que não interessam, priva-nos de descobrir coisas muito mais interessantes.” E eu entendo que, numa era em que os cursos superiores se dedicam demasiado e em exclusivo à especialização atrás de especialização, o caminho deve ser precisamente o oposto: o da transversalidade de saberes e o cruzamento de áreas aparentemente distantes que, contudo, na sua fronteira dão origem à inovação.
E é isso que procuro fazer. Cruzar a medicina, a arte, ciência (...). E que as pessoas ganhem prazer em ler sobre coisas diferentes da sua vida diária, de uma forma simples e culturalmente divertida, acerca de temas cujos artigos demasiado técnicos não lêem. Assim, muito me agrada tê-lo como leitor. Obrigado.
Que significado tem a vida? O tema é tão aliciante quanto vasto. No entanto, vou procurar aproveitar a sua deixa para tentar pensar mais longe. Julgo, por pequenas experiências de leitura sobre o assunto, que a palavra “vida” nunca aprece em contexto algum de uma forma totalmente isolada. A grande maioria dos pensadores, sobretudo das áreas da bioética, criou um debate, quase uma polémica, entre os conceitos de “qualidade” e “santidade” de vida.
Como refere, e bem, as doutrinas de “santidade” possuem um carácter religioso, em que a vida é um dom de Deus e que confere dignidade ao ser humano.
Na minha opinião, é indubitável que o valor da vida humana é um bem extremamente valioso e que deve ser altamente protegido. E essa deve ser a função que o princípio de “santidade” de vida deve continuar a desempenhar. Mas parece-me também correcto elaborar um conceito de qualidade de vida, como complemento. Não uma doutrina adversária.
Escrevo isto a propósito de um texto que sobre cancro oral que irei publicar muito em breve, que o convido a ler. É que a medicina por vezes cura. Mas hoje a medicina e a saúde têm de estar focadas para muito mais além d que a sobrevivência. O sofrimento hoje não é só físico. É psicológico e social, tal como se define o conceito de saúde da OMS. E os conceitos de reabilitação e qualidade de vida impõem-se.
A frieza da economia é que ainda não permite que passem a corresponder, na prática, à realidade do dia-a-dia.
Com um abraço, aguardarei ansiosamente por novos comentários,
Fernando Arrobas
No fim de ler tanto o texto como os respetivos comentários veio-me duas palavras à mente: Livre-arbítrio. Já a religião nos fala disto. Não vou dar a minha opinião sobre o assunto, primeiro porque não o consigo transmitir em tão pouco espaço, depois porque o que pensamos e defendemos por vezes, em alguma fase, situação é perdido de uma forma tão drástica que nem nos apercebemos. Garanto-vos que por mais valores que tenhamos só sabemos como reagir a certas situações na altura, até lá fica a nossa filosofia.
Mas sim, tudo pela vida.
Margarida Marques
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