quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Motivações que o país permite


Com o 25 de Abril abriram-se novos caminhos e alargaram-se horizontes. O ano de 1974 trouxe a possibilidade de se explorarem novas liberdades. Alguns partidos políticos emergiram da clandestinidade a que estavam confinados e outros simplesmente brotaram da vontade de marcar a diferença em termos ideológicos.

Atualmente, numa época em que a maioria das pessoas revela indiferença pelos assuntos políticos, é tempo de serem os jovens, os maiores potenciais agentes moduladores da sociedade, a assumir uma participação activa e séria. Provenientes do associativismo estudantil, de organizações não-governamentais, dos núcleos ou das juventudes partidárias, são alguns os que já participam. Contudo, são também muitos os adormecidos.

Num momento em que se vivem tempos complicados no Ensino Português e em que a evolução do país, no que respeita ao conhecimento e crescimento individual e colectivo, deve ter como desígnio a formação cívica, os sempre bem-vindos inquéritos europeus revelam que existe uma rampa crescente de influência estudantil nos governos de Ensino Superior. Em Portugal, formalmente e juridicamente, a participação estudantil está “aberta”, mas, decorrente da nossa cultura democrática mal aplicada, não são delegadas aos estudantes verdadeiras funções e envolvimento nas matérias específicas.

É certo que os estudantes de hoje não querem ser os desempregados de amanhã e, como tal, com a competição verificada a cada passo, os atos de cidadania são e terão de ser subalternizados. Cumprir os pergaminhos de Bolonha tornava-se aqui impreterível, quando refere a valorização extracurricular. No entanto, têm sido outras as motivações que o país permite.

Já foram aos milhares os que por esse país fora se licenciaram, sem saber ler, escrever ou fazer contas. Quanto mais com competências para a vida em sociedade.
Criou-se, nos últimos anos, um Ensino altamente permissivo no que diz respeito a subitamente se ficar altamente qualificado (ou classificado). Ser Doutor permite que se ascenda nas carreiras hierarquicamente e com salários muito superiores, mesmo sem saber ler, escrever ou fazer contas.

A consequência é que, de forma natural, a dependência contínua de ordens superiores a quem deram formação, faz com que os empregados se desliguem dos objectivos das empresas e tenham mais relutância em tomar como seus os objectivos das empresas que representam. Fará algum sentido dar formação a quem em seguida nos dará ordens? Tem de, obrigatoriamente, criar mal-estar.

Não se pode substituir a sociedade de classes pela sociedade de títulos, mas a verdade é que um título abre muitas portas em Portugal e “o que parece é”. A única mudança identificável do Processo de Bolonha e a suposta criação do espaço europeu de ensino, em que os novos mestrados correspondem às antigas licenciaturas, é nos restaurantes, pois, em vez do: “Sai uma Sopa e um Prato do Dia para o Doutor”, passou a sair “Uma Sopa e um Prato do Dia para o Mestre”.

Qualquer título confere apenas educação e sabedoria, não vaidade e arrogância. Todas as profissões são dignas. Primeiro senhores, depois doutores e engenheiros. Algo que os jovens deveriam ser ensinados a pensar.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Bicho carpinteiro

Notícia de última hora: no ranking das expressões favoritas utilizadas por comentadores e políticos, “gorduras do Estado” foi ultrapassada no primeiro lugar por “buracos na madeira”. Segundo consta, foi detectado um “big hole” orçamental nas contas da Ilha da Madeira.

À semelhança de outros escândalos, durante dias fervilham as injúrias e voam os desmentidos. Assim, estável no terceiro lugar mantém-se sempre a expressão “cabala”. Dada a sua utilização amiúde, esta, nos últimos anos, nunca apresenta grandes oscilações.

Particularmente utilizada pelos nossos políticos no sentido de “armadilha”, será que alguém, todavia, sabe ao certo o que essa expressão significa?  Julgo que cumpre, talvez, por fim, explicar a sua origem. A expressão Cabala deriva do verbo hebraico lecabel, ou receber. No fundo, encerra a codificação simbólica dos mistérios do Universo com Deus no centro. De que mistério falam tanto os políticos, afinal? É que mistério só vislumbro um: ao que parece, na mesma semana em que a Justiça se declarou incompetente para julgar os antigos administradores do “nosso” banco, a “nossa” Madeira transformou-se em queijo suíço.

Existem alguns insectos que se alimentam de Madeira, deixando pequenos “buraquinhos”, que podem estragar e causar algumas alergias aos mais sensíveis. Nestes casos, um insecticida especial ataca o problema na raiz do mesmo e evita o alastramento da praga. No entanto, se o fenótipo é um daqueles insectos “calvos”, “prepotentes”, “que gostam de andar de cuecas na rua”, “donos de um profundo desrespeito por tudo e por todos”, “sem noção da realidade” e “com um estranho alto protecionismo do seu partido”, aí o caso é grave. Para que o insecticida tenha o efeito pretendido, e mais tarde a Madeira não seja novamente atacada e se estrague de uma forma definitiva, normalmente são necessárias umas algemas e uma população consciente na hora da “cruzinha”.


Julgo que seria tempo de o país habituar-se a deixar de lado esses infindáveis bichos carpinteiros, escaravelhos de uma nação, e dar mais valor aos que, como eu e provavelmente o leitor, mal devem algum dinheiro, por pouco que seja, ficam é logo com bicho-no-corpo-inteiro.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Gravatas contra a crise



Lembrada no colarinho dos ricos e dos dandies “do bom gosto”, particularmente em forma de lenço ou como laço, a gravata atravessou séculos e continentes.

A sua origem é sobejamente conhecida. O termo gravata deriva do francês "cravate". Esta expressão, por seu turno, é uma corruptela de "croat", em referência aos croatas, que, segundo reza a história, foram os primeiros a apresentar a indumentária à sociedade parisiense.

Na verdade, há registos do uso de lenços no pescoço por soldados chineses, no século III A.C. e também entre o Exército da Roma Antiga, como sudário. No entanto, a história mais conhecida sobre a origem da gravata data de 1618, quando um regimento croata passou por Paris durante a Guerra dos Trinta Anos.

Ornamentados de um lenço ao pescoço, os croatas influenciaram a moda Francesa, instalando-se a gravata no pescoço e na corte do Rei Louis XIV.

A gravata sempre se evidenciou como uma peça de distinção social. Símbolo de elegância na sala de aula ou num jantar social, de distinção numa conferência ou no consultório médico, de poder em reunião ou ao almoço, de profissionalismo e segurança no parlamento ou na televisão. Mas, na verdade, o que aconteceu ao país, de Alexandre O’Neill, “engravatado todo o ano e a assoar-se à gravata por engano”?

É cada vez mais evidente o abandono desta indumentária. Na Alemanha, entre 1995 e 2005, as vendas de gravatas caíram de 20 milhões para 10 milhões de unidades anualmente e, nos Estados Unidos, mesmo antes da eclosão da invariável crise, segundo um estudo do Instituto Gallup publicado no Wall Street Journal, o uso da gravata já andava em queda entre os homens de negócios americanos.

O primeiro sinal de perda de prestígio da gravata entre os altos executivos ocorreu em meados dos anos 80, com a instituição do “casual Friday”, uma medida das empresas norte-americanas em que, às sextas-feiras, os colaboradores poderiam substituir o fato e gravata por calças de ganga e polo.

Actualmente, o conceito de que ter poder é usar gravata diferenciou-se. Ter poder é, nos dias de hoje, vestir-se como bem entender. Uns dirão que os consumidores simplesmente perderam o gosto pela peça. No entanto, a verdade passa por, assim que as pessoas têm opção, deixam de usar gravata.

Em nome do conforto, o mercado interpretará que a gravata só irá sobreviver se puder ser um acessório opcional a ser usado pelos verdadeiros apreciadores. Rapidamente, teses serão publicadas comprovando que que quem utiliza gravata todos os dias tem maior probabilidade de contrair esta ou aquela doença. Ou, tal como foi premissa para o despacho do ministério da Agricultura de dispensar todos os colaboradores de usar gravata, não utilizar gravata permite baixar 2º C na temperatura do ar condicionado, permitindo, assim, poupar energia.

Ao mesmo tempo, por coincidência, dados no Brasil, revelam que nunca esta peça de vestuário, principalmente masculina, foi tão vendida. Estima-se que foram vendidas, no ano de 2009, perto de 18 milhões de gravatas, sendo cerca de 11 milhões produzidas no próprio país.

Não nego que, após esta ascensão no Brasil, a gravata talvez seja condenada igualmente ao mesmo caminho que vitimou os suspensórios. Mas, uma mera análise da geografia global permite-nos, pelo menos, levantar a dúvida de que a utilização / não utilização da gravata coincide com o ritmo de crescimento económico / recessão económica nos últimos anos.



Usar, ou não, gravata não é sinónimo de nada. Contudo, mesmo que exista a opinião contrária, alguns traços de formalidade incentivam a confiança, o respeito do trabalhador por si próprio e da sua família, factores essenciais para a produção, que, por sua vez, incutem vontade de trabalhar e a sensação de uma representação com rigor do seu produto ou valor. 


Em Londres, talvez a maior praça financeira do Mundo, as mulheres continuam a suportar estoicamente os saltos altos e os homens vestem-se a rigor e não me recordo de ver algum de nó largo na fausta gravata cor-de-rosa.
Nos tempos que correm, importa lembrar que foi particularmente na década de 1930, na época de recessão económica, que o estilo da gravata moderna nasceu. As gravatas ficaram largas, os ombros cresceram, e as lapelas também. Interpretou-se como um contraponto de uma fragilidade em que o homem precisava de se tornar forte novamente.

Tal como no tempo da Grande Depressão, hoje é preciso entender esta mensagem de novo. Se as formas actuais “enforcam” pelo colarinho, então que novas “gravatas” se inventem.

Se possível, com um Ipod. De preferência, com um pouco de lucidez, respeito e honra incorporados.

sábado, 3 de setembro de 2011

Carta aberta ao Ministro da Saúde

Exmo. Sr. Ministro da Saúde do XIX Governo Constitucional de Portugal

Senhor Licenciado em Organização e Gestão de Empresas

Dr. Paulo Macedo

Assunto: O erro em Portugal

Designa-se por transplante, ou enxerto, a intervenção cirúrgica mediante a qual se insere, no organismo hospedeiro, um órgão ou um tecido recolhido num dador. Para efeitos do transplante, realizam-se, entre tecidos enxertados e o organismo hospedeiro, os fenómenos vitais sob as designações de sobrevivência, adaptação e enraizamento e os enxertos podem ser classificados em auto-enxertos, isoenxertos, aloenxertos e xenoenxertos.

Os aloenxertos constituem o transplante clínico comum em que uma pessoa doa um órgão a um indivíduo geneticamente diferente. Entre estes, podem ter-se em consideração, teoricamente, as glândulas endócrinas, como os ovários, a hipófise, a tiróide, o baço, o pâncreas e os testículos e, além disso, vasos sanguíneos, tecidos ósseos, medula óssea, nervos, tendões, pedaços de pele, córnea (ainda que não seja vascularizada, é tecido vital e, por isso, define-se sempre como um transplante). Mas, assumem um particular relevo os transplantes de órgãos integrais como o fígado e o rim, que se pode realizar ex vivo ou ex cadaver, o transplante de pulmão e o transplante de coração, que só pode ser feito, obviamente ex cadaver. Nestes incluem-se ainda, embora em menor escala no que diz respeito ao número de casos, a mão e a face, sendo que uma cirurgia recente incluiu o transplante da mandíbula, os dentes correspondentes e parte da língua.

Estou certo que isto é do conhecimento de V. Exa, sobretudo após a decisão que tomou. Contudo, pareceu-me importante realizar esta pequena revisão antes de avançar para o assunto sobre o qual lhe escrevo esta carta.
Considere os parágrafos anteriores apenas como uma pequena atenção com V.Exa, tal como espero da sua parte, quando me escreva de volta, a resposta com os seguintes dados, visto que a sua especialidade são os números:

Sabe quantos doentes com insuficiência renal são mantidos vivos através de hemodiálise, em Portugal? Nestes doentes, a única forma deixar de realizar hemodiálise para toda a vida, por muitos considerada "a prisão sem grades", é conseguir a doação de um rim (cadáver ou dador vivo), para que possa ser submetido a um transplante.

Sabe V. Exa quantos doentes com diabetes mellitus severa são mantidos vivos através de injecções diárias de insulina, cuja vida seria altamente melhorada com o transplante pancreático?

Sabe V. Exa. que, no que diz respeito aos candidatos a transplante de coração, fígado e medula óssea, que apresentam disfunção severa e terminal, estes morrem sem o transplante pois, diferentemente do rim, não é possível prolongar a vida de doentes que precisam de transplante hepático ou cardíaco?

Sabe ainda que uma das principais causas para o transplante de fígado é a paramiloidose, doença descrita pela primeira vez por Corino de Andrade, em 1952? Em Portugal, o maior foco da doença, existem mais de 600 famílias sob acompanhamento com mais de 2000 casos sintomáticos.

Senhor Ministro:

Desde a Antiguidade, que se encontram vestígios do interesse pelo conceito da utilidade clínica da transplantação de partes do corpo, substituindo partes definitivamente lesadas, por regiões anatómicas idênticas, provenientes de corpos saudáveis.

Em várias representações artísticas, encontra-se um dos milagres mais conhecidos dos dois irmãos medicos Cosme e Damião (300 d.C.), santos padroeiros da transplantação, que exerceram sempre a profissão sem cobrar quaisquer honorários.
Na imagem assiste-se à transplantação da perna de um negro (ou de um mouro) que acabara de falecer, substituindo a perna doente que se encontrava gangrenada.

Milagro de San Cosme y San Damian
Pedro Berruguete (1450-1504)
Museo de la Real Colegiata de San Cosme y San Damian de Covarrubias. Burgos. España.



Embora na esfera das crenças e lendas, acredita-se que foram estas histórias que levaram à vontade de outros fazerem novas abordagens e tentativas de sucesso para o tratamento dos doentes. E foi apenas, no século XX, com a aplicação da Ciclosporina, uma medicação imunosupressora, descoberta em 1972 por Jean-François Borel e apenas aprovada em 1983, para impedir o fenómeno de rejeição dos transplantes,que se melhorou, de forma notável, o prognóstico e a qualidade de vida dos doentes.
Como pode confirmer, a história é recente no que respeita ao transplante de órgãos ter deixado de ser um tratamento experimental e heróico para se converter numa terapia consolidada com uma percentagem maioritária de êxitos.

V.Exa., que tem tanto gosto pelos números, deveria saber que, em Portugal, até 2009, foram transplantados 25630 doentes e que, apenas antecedido pela vizinha Espanha, somos o país na União Europeia com maior número de dadores. Na relatório do Conselho Europeu, International Figures on Donation and Transplantation – 2010, Portugal é cotado como um país de referência neste campo. Não só pela evidência dos números, como pelo qualidades dos seus serviços.

Nos últimos anos, foram escritas teses universitárias em Portugal acerca da qualidade de vida dos doentes transplantados, abordagens psiquiátricas ou, como no meu caso, a importância dos cuidados de saúde oral neste tipo de doentes, uma vez que podem apresentar uma variedade de lesões orais devido à acção directa da medicação ou em consequência da imunosupressão induzida, onde se incluem, entre outras, infecções por bactérias, vírus e fungos, leucoplasias e lesões malignas. Isto é, em volta da transplantação, muito provavelmente com o seu desconhecimento, cimentaram-se àreas no domínio da multidisciplinariedade da saúde e da investigação (umas das outras grandes apostas do seu Governo…).

Tínhamos entrado numa era em que a Transplantação, como acto cirúrgico com elevada taxa de sucesso, não tinha como única métrica do sucesso apenas a sobrevivência do doente. Interessavam estratégias que contribuissem para a sobrevivência, mas também para o resultado geral e para a melhoria da qualidade de vida destes doentes.

Nem tudo eram rosas, mas havia um caminho que se percorria. Até que apareceu, perdoe-me, Vossa Excelência. E, à semelhança do que outros portugueses fizeram em momentos de elevado prestígio nacional, aparece sempre alguém que destrói a escola que tem vindo a ser construída.

Diga-me V.Exa. que tanto sabe de números:

O que foi feito das ideias do Infante D. Henrique, quando a nossa querida Escola Náutica em Paço de Arcos é remetida para a sobrevivência? Que apoio é dado aos grandes escritores de língua portuguesa que, inclusivamente, levaram o nosso Prémio Nobel da Literatura a viver em Lanzarote e António Lobo Antunes a afirmar, sem pudor, que não aceita “em Portugal qualquer espécie de honrarias por não dar ao meu país o direito de me julgar”? Até Camões só se inspirou para escrever Os Lusíadas numa caravela longe daqui.

Voltando à transplantação, não seria lógico que, já que somos a cauda da Europa em tantos outros sectores, não deveríamos investir em mantermo-nos nos primeiros lugares nos sectores em que já lá estamos? V. Exa. questionar-se se o país pode, efectivamente, sustentar o actual número de transplantes é uma declaração muito infeliz da sua parte, que estou disposto, como português cansado de dar tanto poder aos governos, a perdoar.
Para isso, terá, no entanto, de admitir que o senhor revela uma total falta de rumo e ambição para desenvolver o país, repetindo o eterno erro de Portugal: nunca apostar naquilo em que realmente se tornou competente e capaz.

É que, permita-me, Senhor Ministro, antes de saber de números e economia é preciso também saber de história. A grandeza da medicina de todos os tempos foi a de não aceitar a doença e a morte como naturais. Infelizmente, enquanto muitos aspectos da história progridem, outros não mudam.

Receba as minhas mais cordias saudações contribuintes,

Fernando Arrobas da Silva

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Elixir da intemporalidade - Conselhos de saúde de Ramalho Ortigão




“Apetecia-me tomar algo, Ambrósio.” Quem não se lembra do famoso anúncio de televisão a propósito de uns chocolates e uma limusine? Na verdade, a imortalidade desta frase, que marcou uma geração,  tem, de facto, uma razão, não obra do acaso.


Crentes na simbologia, a genialidade dos seus criadores terá, por certo, subliminarmente, tido origem na mitologia grega. “Ambrosia” era um alimento com sabor de mel comido pelos deuses que lhes permitia permanecer imortais.

A busca pela imortalidade é tão antiga como a mitologia e a literatura. O conhecido elixir da longa vida, ou da imortalidade, é hoje apoiado por altos preceitos médicos e bioquímicos através da formula química, D2O, em que o “D” da fórmula química representa o deutério, um isótopo do hidrogénio de massa atómica 2, em vez de 1, como é com a àgua (H2OO. Contudo, no passado a sua elaboração era dependente da não menos famosa “pedra filosofal”.

A alquimia era um conjunto de crenças associadas a certas práticas de manipulação de substâncias. O seu objectivo final era a obtenção da pedra filosofal, um misterioso agente que seria capaz transmutar os metais em ouro, curar todas as doenças e inclusivamente conferir a imortalidade.

O alquimista em busca da pedra filosofal, Joseph Wright (1771)

De entre os alquimistas que mais marcaram a história, Paracelso (Einsiedeln, 17 de Dezembro de 1493 — Salzburgo, 24 de Setembro de 1541), influenciou todo o pensamento médico, conceptualizando que, para cada doença, tinha de existir um elixir específico capaz de curá-la. Assim, a missão de cada alquimista era encontrar esses “segredos” da natureza, de origem vegetal, mas também mineral. Os paracelsistas e os médicos iatroquímicos posteriores a Paracelso continuaram a defender os remédios minerais, muitos dos quais, vieram a ser incorporados nas farmacopeias modernas.

No entanto, crê-se que a alquimia tenha tido origem no Antigo Egipto, mas a única certeza é a de que se desenvolveu na China antiga, sob a influência da filosofia taoísta. Também se cultivou no mundo islâmico, de onde chegou à Europa medieval, como se torna evidente na obra de Roger Bacon e também na obra de Arnau de Vilanova, alquimista, astrólogo e medico espanhol, que recomenda, ao Rei de Nápoles, alimentos, banhos, exercícios e remédios alquímicos para prolongar a juventude.

José Duarte Ramalho Ortigão nasceu no Porto em 1836. Jornalista e escritor português, foi umas principais figuras, junto com Antero de Quental, Eça de Queiroz e Oliveira Martins, entre outros, do movimento académico conhecido pela Geração Coimbrã ou de 70. Dos quatro, foi o que faleceu mais tarde, quando já prefazia 78 anos de idade, quase o dobro da esperança média de vida da época: de entre estes seus contemporâneos, Eça faleceu, em 1900, com 44 anos, Antero de Quental com 48 e Oliveira Martins com 49 anos de idade.

Imaginemos, na actualidade, praticamente dobrar o valor da esperança média de vida que se assenta aproximadamente nos 78 anos, como tinha Ramalho Ortigão. Eça, em biografia que lhe é pedida de Ramalho Ortigão, em carta a Joaquim de Araújo, apronta-se a descrevê-lo como “o verdadeiro tipo de homem moderno, sólido à fadiga, alegre ao trabalho, podendo caminhar quinze milhas, trabalhar doze horas, defender-se bem se o atacarem, sem medo à chuva, nem ao Inferno, crendo em si, querendo por si (...) umas das mais belas organizações que eu conheço: tem a força, tem a bondade, tem a alegria (...) e raras vezes o vejo sem um sorriso.”
É que n’ A Holanda “(…)Horror por horror, prefiro uma árvore pintada a um pente sujo, e antes quero que nos meus pesadelos me apareça uma vaca em cima de um tapete do que uma escova de dentes caída no lixo atrás de uma cómoda.”

Ramalho Ortigão

Qual a origem deste elixir de juventude? Oiçamos alguns dos seus conselhos de vida longa.

"Na epiderme, de cada facto contemporâneo”, de Farpas cravada, num estilo literário que ressuma pitoresco e total actualidade, a educação, a higiene, o exercício, a saúde e a força são os seus cultos: “Ah! Onde estão os tempos em que a beleza era como uma santidade! Em que a vida era a educação e a idealização do corpo! Em que se erguiam estátuas às nudezas maravilhosas!”


É “(...) dever moral, como a oração, o passeio – o largo passeio, de grande respiração, de livre horizonte, bem marchado durante duas horas (...) Como estão sempre constantemente sentadas e aninhadas, os músculos sem exercício afrouxam-se, laxam-se e sempre um grande tédio do espírito coincide com o cansaço do corpo (...) posições débeis e emolientes; cabeça errante, braços emolecidos, corpo abandonado e flácido.” (...) “Todas as mulheres de 14 anos para cima duas horas de valsa por dia. Os movimentos rápidos, galopados, fortemente sacudidos, a transpiração igual, tornam a valsa um exercício radicalmente salutar, quase igual à ginástica: devolve a firmeza do andar, a solidez das articulações, faz girar abundante o sangue, robustece o peito, exercita e excita a facilidade da respiração. É um doce medicamento contra a anemia, a palidez, os suores. (...) Tem-se visto doenças inexplicáveis de mulheres curadas com uma valsa (...) A valsa é moral e educadora: acostuma as mulheres a ter dos homens uma ideia positiva e burguesa.”
“Nas costas de Inglaterra, debaixo de um clima frigidíssimo, um conhecimento perfeito da terapêutica e da higiene leva os habitantes a tomarem banhos de mar em todas as estações do ano e ainda nos maiores rigores do Inverno.” O mar de As Praias de Portugal é “um grande médico, um grande conselheiro, um grande amigo” (…) tanto para “as crianças fraquinhas, para as mulheres débeis, fatigadas”, como para “as grossas constituições linfáticas”.

Numa das poucas vezes em toda a vida que foi ao médico, Ramalho termina: “(…) O doutor, depois de medir a minha tensão arterial e de se inteirar dos diversos sintomas da minha psicastenia, mandou-me sair desde logo de Lisboa e ir fazer uma cura de espírito na oxigenada serenidade da floresta do Tirol ou junto da comunicativa mansidáo dos lagos na Itália ou na Suíça (…) aprender humildemente, na passageira mudança de ares e na suprema e inquebrantável beleza das coisas, a suportar mais docemente os Homens (...) ”

É notável como, quando se lê as obras de Eça de Queiroz ou Ramalho Ortigão, seja nas críticas ou nos hábitos aconselháveis a mudar, e sabendo que tudo foi escrito no século XIX, tanto se mantém contemporâneo e a precisar de rumo. Será que eram demasiado evoluídos ou nós demasiado atrasados? É uma pergunta frequente.

Talvez um pouco dos dois. Mas aqui se viu que juventude eterna não tem idade nem século. É, no espírito crítico e na capacidade de mudança, que está, efectivamente, o elixir…da intemporalidade.

domingo, 17 de julho de 2011

O belo é feio... E o feio é belo ?


                      

Nefertiti, uma das rainhas que mais marcou a história do Egipto.
XVIIIª Dinastia. Cerca de 1350 a.C.
Cópia do original em "lápislazuli"

Não deverá existir visão mais repetida do que a da face humana. Com muito mais do que um mero interesse intelectual, os 225 e poucos centímetros quadrados, independentemente da variação entre cada indivíduo, constituem a peça mais intimamente analisada da história da existência.
Examinada constantemente, em todos os detalhes do nariz, dos olhos ou da boca, a face é o centro de toda a vida emocional. Do nascimento à morte, liga-nos a amigos, à família e a todas as pessoas com um significado especial para nós. Poucas coisas são capazes de nos mover tão profundamente como a face de alguém que nos é querido.
Nefertiti foi uma das rainhas que marcou a história do Egipto. Esposa real de Akhenaton, (XVIII dinastia, cerca de 1350 anos a.C.) descoberta em Tell-El Amama, Nefertiti deve, ao seu busto, ser considerada a representação mais perfeita da beleza. Nefertiti, “a mais bela das belas”, como se vê nos seus traços, pescoço magnífico e olhar cativante, será realmente a mais bela mulher que existiu no mundo?

Em todos os tempos, filósofos e artistas deram ao Homem as suas definições do belo. Graças à iconografia de escultores e pintores é possível reconstruir testemunhos dos conceitos estéticos. Mas a fealdade poderá considerar-se, simplesmente, em oposição ao belo? Por um rosto desagradável ou por um corpo desproporcionado?  
Há frases populares como: “quem feio ama bonito lhe parece” que nos colocam dúvidas ou sugerem contradições. Será que todos acham que um homem ou uma mulher, com os olhos rasgados, é o ideal de toda a gente? Que os lábios grossos são desejados por todos os homens?

Umberto Eco escreve, em História do Feio (2007), que “se um visitante vindo do espaço entrasse numa galeria de arte contemporânea e visse rostos femininos pintados por Picasso e ouvisse os visitantes a julgá-los belos, poderia conceber a ideia errada de que, na realidade quotidiana, os homens do nosso tempo acham belas e desejáveis criaturas femininas com rostos semelhantes aos representados pelo pintor”, com os rostos totalmente distorcidos.

Mulher chorando. Óleo sobre tela (1937)
Pablo Picasso (1881-1973)
Tate Gallery - Londres

Hoje, vive-se num tempo em que os media, através do cinema e da televisão, afectam cada indivíduo, abordando os componentes visuais da emoção humana de uma forma contínua. Uma aparência agradável é hoje parte da aceitabilidade social e a face em particular desempenha um papel especial.
A forma da face, os olhos, a boca, os dentes – em particular aquando do sorriso - são os primeiros sinais visíveis que recebemos no contacto com os outros e é um desejo natural da vida em sociedade querer afectar os outros de uma forma simpática. Nunca um sorriso espontâneo e amigável deixou de provocar uma reacção positiva ao destinatário do gesto.
Actualmente, todas as barreiras da comunicação têm meios para ser ultrapassadas. Das mensagens escritas ao Chat, as pessoas falam menos ao telefone e muito menos escrevem cartas. Porém, o sorriso continua a ser não só a expressão que é universalmente mais apreciada e encorajada nas sociedades humanas, como também a que mais transcende as barreiras da linguagem entre diferentes pessoas ou culturas.
Assim como um pequeno franzir das sobrancelhas pode despoletar uma discussão entre um casal de namorados, pode uma ligeira sugestão de um sorriso iniciar uma conversa entre dois estranhos.
Sorrir é um fenómeno intemporal. É um tema que tem apaixonado cientistas. Desde o sorriso arcaico nas estátuas gregas ao sorriso jovial dos nossos dias que se sabe que representa um papel fundamental no bem-estar dos indivíduos.
Sorrir combate o stress e previne doenças. Ao acelerar a respiração e os batimentos cardíacos, baixa a tensão arterial e melhora a oxigenação do sangue. Estimula a acção do cérebro e exercita o corpo. Rejuvenesce, liberta e aproxima-nos dos outros.
Cada sorriso, seja ele encenado, espontâneo, involuntário, amistoso ou perverso, inicia-se sempre por uma reacção química ao nível do córtex cerebral humano. Trata-se, provavelmente, da única coisa que todos os sorrisos têm efectivamente em comum.
Na sua anatomia, os dentes naturais têm uma variedade infinita de formas, cores, texturas e arranjos diversos em cada indivíduo, criando cada sorriso diferente. Um dos aspectos mais intrigantes deste tema complexo, que é o sorriso, passa precisamente por compreender a maneira como pessoas, culturas e sociedades distintas avaliam, através de diferentes critérios, a aparência pessoal dos indivíduos.

O nosso sentido estético é, em parte, determinado pela era e pela cultura em que estamos inseridos. No Japão, em séculos passados, sem perder a feminilidade, as esposas dos samurais cuidavam da sua aparência com muito esmero e gostavam de manter a pele clara, mas pintavam os dentes de preto e tiravam as sobrancelhas, o que parece totalmente absurdo para a mulher ocidental que só se sente confiante quando tem um tom saudável, os dentes brancos, as sobrancelhas cuidadas, a boca desenhada com o auxílio de um lápis e preenchida por um batom e um blush que dê um aspecto luminoso ao rosto. Em algumas partes de África, as pálpebras são pintadas de preto, as unhas de amarelo ou roxo, o cabelo de várias cores e os dentes ora de preto, vermelho ou azul.
No arquipélago Malaio é vergonhoso ter os dentes brancos como os de “um cão” e, deste modo, limam os incisivos até ficarem com uma forma pontiaguda, parecendo uma serra, ou então perfuram-nos e inserem pedras preciosas. Em outros exemplos, os nativos da região superior ao Rio Nilo extraem os seus 4 dentes da frente, uma vez que não desejam “assemelhar-se com brutos”. Mais para sul, os Batokas extraem apenas os dois incisivos centrais superiores, o que certamente confere ao rosto uma aparência hedionda.
Na sociedade ocidental, imaginemos ver na rua uma pessoa desdentada: o que nos perturba não é a forma dos lábios, ou os poucos dentes que restaram, mas o facto de os dentes que ficaram não serem acompanhados pelos outros que lá deveriam estar. Não conhecemos aquela pessoa, aquela fealdade que nos envolve emocionalmente. Contudo, perante a incoerência ou incompletude daquele conjunto, sentimo-nos autorizados a dizer que aquele rosto “não é bonito”.
A reabilitação oral tem sido a solução para muitas destas pessoas. É certo que um conjunto de dentes apinhados, depois de colocados harmoniosamente, pode transformá-la muito mais bonita. É um facto que é possível eliminar, através do regresso de uma face sorridente, inúmeras inseguranças de uma vida. E certamente que não tem havido falta de empenho na Medicina Dentária para definir as orientações estéticas que lhe dizem respeito. Para além de todas as guias e linhas conhecidas, numa frase, a estética contemporânea é definida pelo desejo dos pacientes de que o seu tratamento represente harmonia e naturalidade. É, porém, uma tarefa mais árdua do que parece.
Em primeiro lugar, é importante não esquecer que, na vida diária, a pessoa não irá apenas sorrir. Num conjunto de outras situações irá também mostrar os dentes. A pessoa irá também chorar, falar, corar, meditar, espantar-se.
Em seguida, sorrir tornou-se muito mais do que uma simples reacção química, uma série de contracções musculares ou um mecanismo fisiológico. É o espelho de um conceito altamente sofisticado de expressão das emoções, de modo de comunicação e de interpretação visual e cognitiva, com inúmeros significados. Um farol de desejo com interesse psicológico, antropológico e social.
E, por fim, é preciso que a experiência da beleza implique uma contemplação desinteressada e pode ser um risco chamar a atenção para defeitos estéticos que não existem na mente da pessoa que procura tratamento. Para além de que o resultado final poderá exprimir desagrado.
A natureza deve ser usada com o melhor exemplo. Antes de qualquer irreversibilidade, considere-se sempre até que ponto tinham razão as bruxas que no primeiro acto de Macbeth gritam: “o belo é feio e o feio é belo…”.
Abrir os olhos e apreciar a imensa complexidade e diversidade de cada rosto, e a cada momento retirar a efemeridade de cada sorriso genuíno, é uma oportunidade única de observar as mil e uma formas de beleza em que a vida se pode exibir. Primeiro goste de si e só depois goste (ou trate) do seu sorriso.


Estátua de Reglindis, também conhecida por Linda Reglindes (989-1016)
Esta personalidade da Idade Média está no coro da Catedral de S. Pedro e S. Paulo em Naumberg
(Reglindis era filha do Rei da Polónia Boleslau I e foi casado com o margrave Hermann de Baden)


Publicado na Revista Moda & Moda - Verão 2011
Disponível em:

sexta-feira, 15 de julho de 2011

O senhor Águas - António Lobo Antunes

Nunca admirei tanto um atleta como admirei José Águas. Para quê, portanto, ir ao futebol se ele já não se encontra no estádio?

Há mais de trinta anos que não assisto a um jogo de futebol. Não conheço os estádios novos, vejo, às vezes, um bocadinho na televisão. Mas entre os dez e os vinte anos não falhava um jogo do Benfica. E não falhei enquanto Águas jogou. Claro que não era apenas Águas: era Costa Pereira, Germano, Ângelo, Simões, Eusébio, Cavém, o grande Mário Esteves Coluna que Otto Glória considerava o melhor jogador português, outros mais artistas que jogadores, como José Augusto, por exemplo, a todos estou grato pela beleza e a alegria que me deram, porém nunca admirei tanto um atleta como admirei José Águas. Para quê, portanto, ir ao futebol se ele já não se encontra no estádio? Era a elegância, a inteligência, a integridade, o talento, e ao pensar em escrever o meu desejo era ser o Águas da literatura. Vi Pelé, Didi, Nilton Santos, Puskas, Di Stefano, Santamaria, tantos outros génios, no tempo em que o futebol não era ainda uma indústria nem os jogadores funcionários competentes, comandados por esse horror a que chamam técnicos: era pura criação, uma actividade eufórica, uma magia cinzelada, uma nascente de prazer, uma inspiração, um entusiasmo. Águas foi tudo isso e, muito novo, ganhou o respeito dos colegas, dos adversários, dos jornalistas da época, que os havia de grande qualidade, Carlos Pinhão, Carlos Miranda, Aurélio Márcio, Homero Serpa, tantos outros. Não jogava futebol: criava futebol, respirava futebol, inventava futebol, e teria sido um privilégio para mim conhecê-lo. Não para falar com ele, para o ouvir. A sua beleza física invulgar distinguia-o de todos os outros, a forma de se mover em campo era única, a autoridade sobre os companheiros natural e humilde. Os miúdos que iam comigo à bola chamavam-lhe senhor Águas, sem sonharem que era desse modo que Simões e Eusébio o tratavam, como tratavam Coluna.
Senhor Águas, senhor Coluna. Reconhecíamo-lo, do alto do terceiro anel, no estádio de então, onde, de tão longe, os jogadores minúsculos, pelo modo de correr, se deslocar no campo, passar, rematar, reconhecíamo-lo pelos seus golpes de cabeça, inimitáveis, pelo sentido da ocupação do espaço, pela simplificada geometria do seu futebol. Não tinha a garra de Ângelo ou Cavém, a força de Coluna, o gigantesco talento de Eusébio, o poder do drible de Simões, a velocidade de José Augusto: era uma espécie de rei sereno e eficaz, um aristocrata perfeito. Até a andar os olhos ficavam presos nele, na harmonia dos gestos, no modo de ajeitar bola, e eu, criança de dez anos ou adolescente de quinze, pensava tenho de trabalhar mais esta página, ainda não chego aos calcanhares de José Águas. Escrever como ele jogava, com a mesma subtileza e a mesma eficácia. Escrever como a equipa do Benfica, umas vezes à Ângelo, outras à Germano, outras à Coluna, e finalizar à Águas. Nunca deve ter ouvido falar em mim nem podia adivinhar que um garoto qualquer o tomava não apenas como mestre de futebol mas como mestre de escrita. Só, mais tarde, certos saxofonistas de jazz, Bird, Coltrane, Webster, Coleman, Hodges, alguns mais, tiveram, sobre o meu trabalho, influência semelhante. Mas Águas foi o meu primeiro e indisputado professor: escreve como ele joga, meu estúpido, aprende a escrever como ele jogava. Como morava em Benfica via-o, às vezes, no autocarro do clube e ficava, pasmado de admiração, a fitá-lo. Isto lembra-me o meu irmão Nuno chegando a casa de dedo no ar

- Toquei no Eusébio, toquei no Eusébio

como provavelmente, eu o faria, porque na infância e na adolescência o futebol era, para além de uma aprendizagem do mundo, um prazer infinito. A cor dos equipamentos

(o meu amigo Artur Semedo:

- Não sou um homem às riscas, sou homem de uma cor só)

a entrada em campo, o hino, tudo isto me exaltava e fazia feliz. E as vitórias, comemoradas em Benfica com bebedeiras eufóricas. Uma das minhas glórias secretas, confesso-o agora, consiste em ter visto a fotografia do meu pai no balneário do hóquei em patins do Benfica, de ele ter estado no Campeonato da Europa de 1936, em Estugarda, com vinte ou vinte e um anos, e de brincarmos com uma caixa de lata cheia de medalhas, a que o meu pai não dava importância alguma e eu considerava inestimáveis. Há pouco, a minha mãe

- O que faço eu a isto?

exibindo-me uma espécie de troféu ou de placas num estojo, que alguns anos antes de morrer a Federação de Patinagem lhe entregou, juntamente com outras antigas glórias, e que me recordo de o meu pai, que não saía, ir receber com satisfação secreta. Mas, claro, eu era só filho do Lobo Antunes, não era filho do Águas, e ainda sei medir as distâncias. Portanto, o que vou eu fazer a um campo de futebol se ele já não joga? Seguir os funcionários competentes de um negócio? Assistir ao bailado dos técnicos? Ver a fantasia substituída pela sofreguidão, a ambição pela avidez, o amor ao clube pela violência idiota? Claro que continuo a querer que o Benfica ganhe. Claro que sou, como em tudo o resto, parcial, sectário, por vezes sem bom senso algum. Mas há séculos que não sofro com as derrotas e, sobretudo, não choro lágrimas sinceras com elas: estou-me nas tintas. Contudo voltaria a trotar, radiante, para assistir à entrada em campo de Costa Pereira, Mário João, Germano, Ângelo, Cavém, Cruz, José Augusto, Eusébio, Águas, Coluna e Simões, a agradecer-lhes o facto de me terem, durante anos e anos, colorido a existência. E talvez no fim do jogo, postado junto ao autocarro, quando os jogadores saíssem do balneário, o senhor Águas me apertasse a mão.

António Lobo Antunes

in Visão