domingo, 19 de setembro de 2010

Cultura vs Cultura

Ler muito e com critério. Ir ao cinema, ao teatro e a espectáculos culturais. Participar activamente em qualquer tertúlia. Indicar, com clareza, quais as preferências musicais. Visitar museus. Curiosidade na receita dos pastéis de Belém. Saber quem foi o Campeão do Mundo de Futebol em 1966, saber o que foi o 25 Abril de 1974: tudo é cultura?

A definição de cultura não é uma realidade pacífica.

No recordista (em longevidade) mandato da República Francesa de François Miterrand, um dos ministros mais influentes, que elevou a França como país das Artes, da Música e do Teatro, foi o da cultura. De seu nome Jack Lang, um dia, questionado num programa de televisão sobre esta definição, limitou-se a responder que existe a tendência de nos referirmos à cultura pelo seu lado erudito e académico e aos estudos e conhecimentos de um indivíduo, à condição privilegiada do "Homem culto". Ainda assim, continuou, os tempos actuais exigem uma nova forma de entender a cultura: "Cultura é a forma como nos vestimos...Cultura é a forma como nos alimentamos... Cultura é sermos desportistas... Cultura é a forma como nos relacionamos com as outras pessoas... E depois cultura também é ler, assistir a um espectáculo e ser erudito."

Não reproduzo com rigor todas as palavras. Contudo era este o seu sentido para a palavra cultura. Uma nova definição para uma nova exigência dos tempos.

Quero acreditar que o evoluir cultural do mundo moderno caminha neste sentido. A vida activa de qualquer ser quotidiano deve conter todas estas, e mais, componentes.
É, certamente, impossível, ou muito difícil, mantermos-nos a par de todas estas actividades.
Mas importa-me aqui particularmente falar na restrição à nossa especialidade profissional.

Eu não sou, e sou, adepto dos tecnocratas, pois técnico, em sentido lato, “pertence exclusivamente a uma arte ou a uma ciência”. Devemos ser autênticos especialistas e de elevada cultura na nossa área, mas devemos também procurar ser pessoas esclarecidas e interessadas nas mais diversas?

Poucas profissões haverá no mundo tão exigentes como ser médico. O poder de decidir sobre o sofrimento e, muitas vezes, a vida e a morte das pessoas, é um poder que mais nenhuma classe tem. E a responsabilidade da perfeita convicção aquando da proposta de uma terapêutica médica também o é.
A formação é contínua e exigente. Semanalmente, quase diariamente, e passo a passo, sempre, com a mesma, necessária, seriedade e rigor. A quantidade de literatura médica é infindável e os congressos, mesmo apesar de interesses comerciais e marcações turísticas, são muitos.

Assim, pergunto-me se será possível, após a leitura sobre a descoberta, de investigadores da Faculdade de Medicina de São Paulo a partir da montagem de uma árvore genealógica, de uma nova doença mortal, designada provisoriamente por neuropatia hereditária motora e autonómica progressiva que se caracteriza por fraqueza dos membros superiores, inchaço da barriga, obstipação intestinal e aumento do nível de colesterol, ter disposição para iniciar um livro de José Saramago?
Não será certamente o mais apetecível. É um facto que há 30, 40 anos a cultura médica e outras formas de cultura eram mais compatíveis. A literatura médica era incomparavelmente menor.
Hoje, a hiper-especialização e a velocidade vertiginosa (e a competição!) dos progressos da Medicina impõem outros ritmos de leitura e dedicação.

A culpa é da profissão? É da vontade? Quanto a mim, o maior entrave são os horários de trabalho descabidos e, a consequente, falta de tempo para os mais diversos lazeres não relacionados com a prática profissional.

Acontece que a medicina é outra quando praticada por médicos cultos e em Portugal existe essa grande tradição, que é de ansiar que permaneça. Temos, entre muitos, o exemplo da comprovada genialidade de Adolfo Correia da Rocha, o nosso saudoso Miguel Torga, médico-poeta.

Penso que será tempo de o país compreender a necessidade de transversalidade de interesses e conhecimentos inerentes a uma personalidade humana, para que este evolua.

Mas afinal, – perguntavam-me há dias, a propósito de eu defender afincadamente este tema na mesa redonda – o que é que quer um doente quando no seu sofrimento procura um médico para o ajudar? A sua competência profissional ou um cidadão actualizado sobre literatura portuguesa, estrangeira ou outro tema qualquer não relacionado com a sua profissão?

- “Os doentes apenas querem que lidem com eles da mesma forma cuidada como lidariam com um amigo”, foi a minha resposta.

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