domingo, 26 de dezembro de 2010

Um sorriso. Um conto de Natal

Para que servirá todo o saber acumulado, dominado e partilhado, procurado durante anos a fio nas Faculdades onde nos licenciamos? Todos quantos me conhecem o sabem: não me vanglorio de famas na ciência que partilho. Porém, esta é uma história que não quis deixar de contar.
O Natal é o feriado comemorado anualmente a 25 de Dezembro que celebra o nascimento de Jesus de Nazaré. Não é apenas um dia, mas uma época. É um ciclo de vários dias numa quadra que prima pela união familiar e entrega de presentes à mesma e ao próximo, em que, tradicionalmente, todos convivem num ambiente sorridente e de confiança, deixando para trás as desavenças durante o ano. E é daí que nasce este meu conto de Natal.
No decorrer desta semana recebemos na clínica um doente oncológico. Foi-lhe diagnosticada em 2008 uma neoplasia maligna (cancro). Já havia sido operado, porém, ainda apresentava metástases e encontra-se, actualmente, em regimes frequentes de quimioterapia. De entre todas as razões que tinha para não sorrir, o seu desejo era voltar a fazê-lo. E apenas não o fazia devido à parca quantidade de dentes com que se encontrava.
O principal objectivo da reabilitação oral é a recuperação normal das funções de mastigação, fonação e estética. É deveras interessante o valor que as pessoas passam a dar estes actos, tão inatos e naturais, quando estão perdidos.
As pessoas deixaram de ir ao dentista para tratar dos dentes. Passaram a ir ao dentista para tratar de si. E a Medicina Dentária actual exige o tratamento de um sistema que inclui a face, a gengiva, os lábios, os dentes, os maxilares, os músculos mastigatórios e faciais, o ligamento periodontal e a articulação têmporo-mandibular, componentes que se devem reger por em equilíbrio.
Reabilitação, enquanto definição, é um processo gradual de restabelecimento das funções perdidas aumentando, assim, a qualidade de vida dos doentes. Deste modo, não é fácil (nem correcto) realizar uma reabilitação oral num curto de espaço de tempo.
Cada caso é um caso e merece ser estudado ao mais ínfimo pormenor.
Com o objectivo de que, a cada sessão, o doente fique melhor do que chegou, o diagnóstico e plano de tratamento devem ser bem considerados e desenhados. Para isso, são necessários, no mínimo, uma Radiografia Panorâmica e modelos de estudo e, por vezes, uma TAC e ainda estudos fotográficos.
Também as fases provisórias são fundamentais para o sucesso do tratamento definitivo. É através da reabilitação oral provisória, ora com próteses removíveis ou coroas em acrílico, que se consegue restabelecer os padrões correctos de oclusão, mastigação e estética, que uma vez alcançadas e estabilizadas, permitem terminar com mais sucesso os tratamentos de reabilitação oral definitiva.
A reabilitação oral é um processo lento e demorado, pois é apenas desse modo que se consegue alcançar com satisfação a duração dos tratamentos a longo prazo.
No caso deste doente, o tempo é uma incógnita. Os tratamentos de quimioterapia, como quaisquer outros estados de saúde comprometidos, influenciam a natureza de determinados tipos de tratamentos dentários e torna-se fulcral conhecer a História Médica e o estado de saúde em todos os momentos de intervenção, seja através de comunicação com os outros médicos do doente, seja através de determinados exames ou com recurso a técnicas especiais de prevenção de possíveis complicações.
Actualmente, este doente encontra-se estabilizado. Em concordância com os seus médicos, definimos rigorosamente um plano de tratamento para a sua condição oral. Além da cavidade oral não tratada poder representar sempre um foco de infecção acrescido e uma porta de entrada para bactérias, a cavidade oral tratada permite uma melhor eficiência mastigatória e, com isso, uma melhor nutrição e confiança social restabelecida, factores extremamente consideráveis no prognóstico de doentes medicamente comprometidos.
Felizmente, os tratamentos oncológicos evoluíram consideravelmente e actualmente é esperado que possam viver normalmente por vários anos. Contudo, neste Natal encontra-se estável e animado, mas como será o próximo? Em doentes deste tipo assolam-nos sempre considerações acerca da esperança de vida.
A sua vontade de sorrir cativou-me. A mim e a todos os membros da clínica. Queríamos que neste Natal tirasse uma fotografia a sorrir com a família.
Assim, durante toda a semana fizemos horas extraordinárias. Estadias no laboratório até certas horas da madrugada. Fizemos menos compras de Natal para a nossa família, mas no dia 23 ao fim do dia tínhamos o trabalho de prótese fixa provisório colocado, com elevados padrões de estética e de mastigação restabelecidos.
Pareceu-me que estava feliz. Demos um abraço na despedida, com a promessa de nos vermos em breve na continuação dos tratamentos. Mas que valor teria uma certeza, se não fosse uma dúvida? Liguei-lhe a saber como se sentia no dia 25, dia de Natal. Respondeu-me que, de facto, sentia outra confiança.
Imaginei-lhe o rosto sereno e um sorriso de bem-aventurança nos lábios. E entendi que em tudo temos de ser humanos e não apenas uma função.
Estoril, 26 de Dezembro de 2010