sábado, 14 de maio de 2011

A guerra dos dentes perdidos

Esta semana, pode dizer-se, foi plena de peripécias que se traduziram todas afinal numa conclusão comum. Começou segunda-feira de manhã bem cedo. O meu amigo José Luís Guerreiro (nome fictício, por uma questão de brio e sigilo profissional) tinha mais uma consulta comigo, a propósito de um tratamento de reabilitação oral que tem vindo a realizar, de forma a repor os dentes que perdeu na guerra em África faz mais de 30 anos.
Convidou-me para ir ao café em seguida. Falou-me que anda deprimido e que não entende por que lhe parece que não existe volta a dar. É um sentimento novo, que sabe que não faz sentido, mas que teima em não conseguir debelar.
Por um lado compreendi-o. Eu que sou tão novo ainda, com 27 anos, e sinto que este país me está constantemente a desmotivar, imagino a quem já viu e desiludiu mais e se lhe afiguram menos anos para dar a volta. Mas por outro retorqui que tem de reagir e que a boca nova será uma grande ajuda.
Terça e quarta-feira não deixaram de ser dias normais, ou iguais, entre vindas e desavindas do consultório, do laboratório, às praias do Estoril e a casa almoçar, dormir e passear o cão.
Na quinta-feira, ao final da tarde, fui ouvir uma lição de António Lobo Antunes, a 100ª em virtude de um ciclo de conferências organizado pela Universidade de Lisboa em honra da comemoração dos seus 100 anos.
Sou sincero quando admito que de todos os livros que tenho de António Lobo Antunes em nenhum ainda consegui passar da 2ª página. Leitor assíduo de todo o tipo de livros desde cedo sinto, porém, falta de bagagem, cavalos e carroçaria para o compreender. A anos-luz da sua genialidade é onde me sinto. Contudo, a lição que ouvi foi retumbante, um refrescar de alma e, provavelmente, a lição que ainda me faltava ouvir na Universidade, mesmo depois de me ter licenciado.
2 x 2 = 4 é uma parede, disse ele, citando Dostoevsky.
Voltei a arriscar. Cheguei a casa e abri Ontem não te ouvi em Babilónia. Nada. Fui a uma festa com uns amigos. Deitei-me cedo e acordei tarde, ou melhor, ao contrário.
E sexta-feira, de novo, um veterano da guerra de África a quem dei uma consulta de primeira vez. Logo na radiografia panorâmica eram evidentes os dentes em falta que se prontificou a dizer que tinham sido “arrancados” em plena selva.
Mas era Lobo Antunes que não me saia da cabeça. No final da conferência experimentei cumprimentá-lo e a ideia anterior de figura superior

que é

e antipática

com estranhos, o que aceito e julgo normal, embora nesse aspecto contradiga a característica anterior,

voltou a estar presente,
Tinha tanto de genialidade, como de antipatia.
pensava.
Toca o telefone. A minha Mãe ligava-me da FNAC. Queria uma opinião para um presente que iria oferecer numa festa de anos. Disse o que pensava e desligámos o telefone com um beijinho e um “até logo”.
Liguei-lhe de novo
- Mãe, compra-me as crónicas do Lobo Antunes, por favor.
Acabado de sair o quarto, esgotado o primeiro, trouxe-me o segundo.
E ainda bem. Do índice transportei-me imediatamente para a crónica: Receita para me lerem. Embora de uma densidade que não dá azo a retirar o que seja se não estivermos com concentração, compreendi-o pela primeira vez
mais ou menos
e passei a meta da 2ª página
(a crónica tinha três)
Adormeci. E hoje é sábado.
- Que calor
Vi logo da janela. Passei o dia a banhos, entrando de cabeça na piscina com medo do choque térmico, saindo da água com um sorriso inacreditável. E entre cada salto crónicas, crónicas, crónicas…
“ (…) Acabado o tema principiei a roer a caneta em busca de uma gesta equivalente. Não sei por que misteriosa associação vieram-me à cabeça as minhas aventuras com dentistas, sobretudo o soldado que me arrancou um dente a sangue frio em Angola. Eu, que não bebo, trouxe uma garrafa de uísque a dividir por dois. Para mim como anestésico, para ele a fim de lhe estimular a coragem. Após umas golaças a meias sentei-me numa cadeira de ferro, ordenei
- Vamos a isto
e abri a boca. Nada. Ficou de turquês em punho, imóvel. Estendi-lhe a garrafa
- Mama-me lá um bocado como deve ser.
O líquido desceu até à parte de baixo do rótulo e o soldado, possuído de uma fúria que roçava o delirium-tremens, enfiou-me o joelho na barriga e desatou a puxar garantindo-me
- Seja cego se não há-de sair, seja cego se não há-de sair.
Nunca encontrei olhos tão vermelhos e espumava. O dente saiu de facto, mas saiu-me também a caveira pela boca. Toda a caveira. Talvez não exagere se afirmar que doía um bocadinho. Não existia um nervo em mim que não tilintasse campainhas. Julgo que o pelotão inteiro assistiu à degola, fazendo apostas sobre o número de vértebras dorsais que acompanhariam a caveira. Mil anos que viva que não me esqueço do barulho do molar ao quebrar-se.
Achei o assunto por assim dizer doloroso e pus os dentistas de lado. Vazio horrível: e agora? A infância? Não. A literatura? Nem falar. Política? Esquece. O barulho do molar apareceu-me de novo na lembrança. Graças a Deus por pouco tempo (…) ”
(António Lobo Antunes. A crónica que não consegui escrever. Segundo livro de crónicas. 2002)
Registei imediatamente que nas próximas consultas terei de pesquisar por eventuais raízes residuais daqueles dentes perdidos.
E já tenho tema para o próximo café com o meu amigo. Um homem que sofre dos dentes é sempre um homem amargurado. Nunca um houve um filósofo que conseguisse suportar pacientemente uma dor de dentes, disse William Shakespeare.
No século XXI, e sem guerras, os números relativos aos dentes extraídos dos portugueses continuam a ser impressionantes. E com uma imensidão de consequências na saúde.
Com excepção daqueles sem outra indicação ou alternativa, a extracção de dentes
apenas (porque o mais significativo é não cuidar)
não pode ser vista, nem pelas pessoas, nem pelos médicos dentistas, com leveza e com normalidade. Afinal estamos a falar de higiene, do nosso corpo e da natureza.

Os tratamentos de medicina dentária hoje são de outro nível. De outra exigência. Sob pena de entrarmos na máquina do tempo e sermos todos retratados de novo por Caravaggio, urge que se consiga escrever
Caravaggio, 1607, Palazo Pitti, Florença, Itália

(e fazer)
alguma coisa sobre isso.