domingo, 17 de julho de 2011

O belo é feio... E o feio é belo ?


                      

Nefertiti, uma das rainhas que mais marcou a história do Egipto.
XVIIIª Dinastia. Cerca de 1350 a.C.
Cópia do original em "lápislazuli"

Não deverá existir visão mais repetida do que a da face humana. Com muito mais do que um mero interesse intelectual, os 225 e poucos centímetros quadrados, independentemente da variação entre cada indivíduo, constituem a peça mais intimamente analisada da história da existência.
Examinada constantemente, em todos os detalhes do nariz, dos olhos ou da boca, a face é o centro de toda a vida emocional. Do nascimento à morte, liga-nos a amigos, à família e a todas as pessoas com um significado especial para nós. Poucas coisas são capazes de nos mover tão profundamente como a face de alguém que nos é querido.
Nefertiti foi uma das rainhas que marcou a história do Egipto. Esposa real de Akhenaton, (XVIII dinastia, cerca de 1350 anos a.C.) descoberta em Tell-El Amama, Nefertiti deve, ao seu busto, ser considerada a representação mais perfeita da beleza. Nefertiti, “a mais bela das belas”, como se vê nos seus traços, pescoço magnífico e olhar cativante, será realmente a mais bela mulher que existiu no mundo?

Em todos os tempos, filósofos e artistas deram ao Homem as suas definições do belo. Graças à iconografia de escultores e pintores é possível reconstruir testemunhos dos conceitos estéticos. Mas a fealdade poderá considerar-se, simplesmente, em oposição ao belo? Por um rosto desagradável ou por um corpo desproporcionado?  
Há frases populares como: “quem feio ama bonito lhe parece” que nos colocam dúvidas ou sugerem contradições. Será que todos acham que um homem ou uma mulher, com os olhos rasgados, é o ideal de toda a gente? Que os lábios grossos são desejados por todos os homens?

Umberto Eco escreve, em História do Feio (2007), que “se um visitante vindo do espaço entrasse numa galeria de arte contemporânea e visse rostos femininos pintados por Picasso e ouvisse os visitantes a julgá-los belos, poderia conceber a ideia errada de que, na realidade quotidiana, os homens do nosso tempo acham belas e desejáveis criaturas femininas com rostos semelhantes aos representados pelo pintor”, com os rostos totalmente distorcidos.

Mulher chorando. Óleo sobre tela (1937)
Pablo Picasso (1881-1973)
Tate Gallery - Londres

Hoje, vive-se num tempo em que os media, através do cinema e da televisão, afectam cada indivíduo, abordando os componentes visuais da emoção humana de uma forma contínua. Uma aparência agradável é hoje parte da aceitabilidade social e a face em particular desempenha um papel especial.
A forma da face, os olhos, a boca, os dentes – em particular aquando do sorriso - são os primeiros sinais visíveis que recebemos no contacto com os outros e é um desejo natural da vida em sociedade querer afectar os outros de uma forma simpática. Nunca um sorriso espontâneo e amigável deixou de provocar uma reacção positiva ao destinatário do gesto.
Actualmente, todas as barreiras da comunicação têm meios para ser ultrapassadas. Das mensagens escritas ao Chat, as pessoas falam menos ao telefone e muito menos escrevem cartas. Porém, o sorriso continua a ser não só a expressão que é universalmente mais apreciada e encorajada nas sociedades humanas, como também a que mais transcende as barreiras da linguagem entre diferentes pessoas ou culturas.
Assim como um pequeno franzir das sobrancelhas pode despoletar uma discussão entre um casal de namorados, pode uma ligeira sugestão de um sorriso iniciar uma conversa entre dois estranhos.
Sorrir é um fenómeno intemporal. É um tema que tem apaixonado cientistas. Desde o sorriso arcaico nas estátuas gregas ao sorriso jovial dos nossos dias que se sabe que representa um papel fundamental no bem-estar dos indivíduos.
Sorrir combate o stress e previne doenças. Ao acelerar a respiração e os batimentos cardíacos, baixa a tensão arterial e melhora a oxigenação do sangue. Estimula a acção do cérebro e exercita o corpo. Rejuvenesce, liberta e aproxima-nos dos outros.
Cada sorriso, seja ele encenado, espontâneo, involuntário, amistoso ou perverso, inicia-se sempre por uma reacção química ao nível do córtex cerebral humano. Trata-se, provavelmente, da única coisa que todos os sorrisos têm efectivamente em comum.
Na sua anatomia, os dentes naturais têm uma variedade infinita de formas, cores, texturas e arranjos diversos em cada indivíduo, criando cada sorriso diferente. Um dos aspectos mais intrigantes deste tema complexo, que é o sorriso, passa precisamente por compreender a maneira como pessoas, culturas e sociedades distintas avaliam, através de diferentes critérios, a aparência pessoal dos indivíduos.

O nosso sentido estético é, em parte, determinado pela era e pela cultura em que estamos inseridos. No Japão, em séculos passados, sem perder a feminilidade, as esposas dos samurais cuidavam da sua aparência com muito esmero e gostavam de manter a pele clara, mas pintavam os dentes de preto e tiravam as sobrancelhas, o que parece totalmente absurdo para a mulher ocidental que só se sente confiante quando tem um tom saudável, os dentes brancos, as sobrancelhas cuidadas, a boca desenhada com o auxílio de um lápis e preenchida por um batom e um blush que dê um aspecto luminoso ao rosto. Em algumas partes de África, as pálpebras são pintadas de preto, as unhas de amarelo ou roxo, o cabelo de várias cores e os dentes ora de preto, vermelho ou azul.
No arquipélago Malaio é vergonhoso ter os dentes brancos como os de “um cão” e, deste modo, limam os incisivos até ficarem com uma forma pontiaguda, parecendo uma serra, ou então perfuram-nos e inserem pedras preciosas. Em outros exemplos, os nativos da região superior ao Rio Nilo extraem os seus 4 dentes da frente, uma vez que não desejam “assemelhar-se com brutos”. Mais para sul, os Batokas extraem apenas os dois incisivos centrais superiores, o que certamente confere ao rosto uma aparência hedionda.
Na sociedade ocidental, imaginemos ver na rua uma pessoa desdentada: o que nos perturba não é a forma dos lábios, ou os poucos dentes que restaram, mas o facto de os dentes que ficaram não serem acompanhados pelos outros que lá deveriam estar. Não conhecemos aquela pessoa, aquela fealdade que nos envolve emocionalmente. Contudo, perante a incoerência ou incompletude daquele conjunto, sentimo-nos autorizados a dizer que aquele rosto “não é bonito”.
A reabilitação oral tem sido a solução para muitas destas pessoas. É certo que um conjunto de dentes apinhados, depois de colocados harmoniosamente, pode transformá-la muito mais bonita. É um facto que é possível eliminar, através do regresso de uma face sorridente, inúmeras inseguranças de uma vida. E certamente que não tem havido falta de empenho na Medicina Dentária para definir as orientações estéticas que lhe dizem respeito. Para além de todas as guias e linhas conhecidas, numa frase, a estética contemporânea é definida pelo desejo dos pacientes de que o seu tratamento represente harmonia e naturalidade. É, porém, uma tarefa mais árdua do que parece.
Em primeiro lugar, é importante não esquecer que, na vida diária, a pessoa não irá apenas sorrir. Num conjunto de outras situações irá também mostrar os dentes. A pessoa irá também chorar, falar, corar, meditar, espantar-se.
Em seguida, sorrir tornou-se muito mais do que uma simples reacção química, uma série de contracções musculares ou um mecanismo fisiológico. É o espelho de um conceito altamente sofisticado de expressão das emoções, de modo de comunicação e de interpretação visual e cognitiva, com inúmeros significados. Um farol de desejo com interesse psicológico, antropológico e social.
E, por fim, é preciso que a experiência da beleza implique uma contemplação desinteressada e pode ser um risco chamar a atenção para defeitos estéticos que não existem na mente da pessoa que procura tratamento. Para além de que o resultado final poderá exprimir desagrado.
A natureza deve ser usada com o melhor exemplo. Antes de qualquer irreversibilidade, considere-se sempre até que ponto tinham razão as bruxas que no primeiro acto de Macbeth gritam: “o belo é feio e o feio é belo…”.
Abrir os olhos e apreciar a imensa complexidade e diversidade de cada rosto, e a cada momento retirar a efemeridade de cada sorriso genuíno, é uma oportunidade única de observar as mil e uma formas de beleza em que a vida se pode exibir. Primeiro goste de si e só depois goste (ou trate) do seu sorriso.


Estátua de Reglindis, também conhecida por Linda Reglindes (989-1016)
Esta personalidade da Idade Média está no coro da Catedral de S. Pedro e S. Paulo em Naumberg
(Reglindis era filha do Rei da Polónia Boleslau I e foi casado com o margrave Hermann de Baden)


Publicado na Revista Moda & Moda - Verão 2011
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