quarta-feira, 20 de julho de 2011

Elixir da intemporalidade - Conselhos de saúde de Ramalho Ortigão




“Apetecia-me tomar algo, Ambrósio.” Quem não se lembra do famoso anúncio de televisão a propósito de uns chocolates e uma limusine? Na verdade, a imortalidade desta frase, que marcou uma geração,  tem, de facto, uma razão, não obra do acaso.


Crentes na simbologia, a genialidade dos seus criadores terá, por certo, subliminarmente, tido origem na mitologia grega. “Ambrosia” era um alimento com sabor de mel comido pelos deuses que lhes permitia permanecer imortais.

A busca pela imortalidade é tão antiga como a mitologia e a literatura. O conhecido elixir da longa vida, ou da imortalidade, é hoje apoiado por altos preceitos médicos e bioquímicos através da formula química, D2O, em que o “D” da fórmula química representa o deutério, um isótopo do hidrogénio de massa atómica 2, em vez de 1, como é com a àgua (H2OO. Contudo, no passado a sua elaboração era dependente da não menos famosa “pedra filosofal”.

A alquimia era um conjunto de crenças associadas a certas práticas de manipulação de substâncias. O seu objectivo final era a obtenção da pedra filosofal, um misterioso agente que seria capaz transmutar os metais em ouro, curar todas as doenças e inclusivamente conferir a imortalidade.

O alquimista em busca da pedra filosofal, Joseph Wright (1771)

De entre os alquimistas que mais marcaram a história, Paracelso (Einsiedeln, 17 de Dezembro de 1493 — Salzburgo, 24 de Setembro de 1541), influenciou todo o pensamento médico, conceptualizando que, para cada doença, tinha de existir um elixir específico capaz de curá-la. Assim, a missão de cada alquimista era encontrar esses “segredos” da natureza, de origem vegetal, mas também mineral. Os paracelsistas e os médicos iatroquímicos posteriores a Paracelso continuaram a defender os remédios minerais, muitos dos quais, vieram a ser incorporados nas farmacopeias modernas.

No entanto, crê-se que a alquimia tenha tido origem no Antigo Egipto, mas a única certeza é a de que se desenvolveu na China antiga, sob a influência da filosofia taoísta. Também se cultivou no mundo islâmico, de onde chegou à Europa medieval, como se torna evidente na obra de Roger Bacon e também na obra de Arnau de Vilanova, alquimista, astrólogo e medico espanhol, que recomenda, ao Rei de Nápoles, alimentos, banhos, exercícios e remédios alquímicos para prolongar a juventude.

José Duarte Ramalho Ortigão nasceu no Porto em 1836. Jornalista e escritor português, foi umas principais figuras, junto com Antero de Quental, Eça de Queiroz e Oliveira Martins, entre outros, do movimento académico conhecido pela Geração Coimbrã ou de 70. Dos quatro, foi o que faleceu mais tarde, quando já prefazia 78 anos de idade, quase o dobro da esperança média de vida da época: de entre estes seus contemporâneos, Eça faleceu, em 1900, com 44 anos, Antero de Quental com 48 e Oliveira Martins com 49 anos de idade.

Imaginemos, na actualidade, praticamente dobrar o valor da esperança média de vida que se assenta aproximadamente nos 78 anos, como tinha Ramalho Ortigão. Eça, em biografia que lhe é pedida de Ramalho Ortigão, em carta a Joaquim de Araújo, apronta-se a descrevê-lo como “o verdadeiro tipo de homem moderno, sólido à fadiga, alegre ao trabalho, podendo caminhar quinze milhas, trabalhar doze horas, defender-se bem se o atacarem, sem medo à chuva, nem ao Inferno, crendo em si, querendo por si (...) umas das mais belas organizações que eu conheço: tem a força, tem a bondade, tem a alegria (...) e raras vezes o vejo sem um sorriso.”
É que n’ A Holanda “(…)Horror por horror, prefiro uma árvore pintada a um pente sujo, e antes quero que nos meus pesadelos me apareça uma vaca em cima de um tapete do que uma escova de dentes caída no lixo atrás de uma cómoda.”

Ramalho Ortigão

Qual a origem deste elixir de juventude? Oiçamos alguns dos seus conselhos de vida longa.

"Na epiderme, de cada facto contemporâneo”, de Farpas cravada, num estilo literário que ressuma pitoresco e total actualidade, a educação, a higiene, o exercício, a saúde e a força são os seus cultos: “Ah! Onde estão os tempos em que a beleza era como uma santidade! Em que a vida era a educação e a idealização do corpo! Em que se erguiam estátuas às nudezas maravilhosas!”


É “(...) dever moral, como a oração, o passeio – o largo passeio, de grande respiração, de livre horizonte, bem marchado durante duas horas (...) Como estão sempre constantemente sentadas e aninhadas, os músculos sem exercício afrouxam-se, laxam-se e sempre um grande tédio do espírito coincide com o cansaço do corpo (...) posições débeis e emolientes; cabeça errante, braços emolecidos, corpo abandonado e flácido.” (...) “Todas as mulheres de 14 anos para cima duas horas de valsa por dia. Os movimentos rápidos, galopados, fortemente sacudidos, a transpiração igual, tornam a valsa um exercício radicalmente salutar, quase igual à ginástica: devolve a firmeza do andar, a solidez das articulações, faz girar abundante o sangue, robustece o peito, exercita e excita a facilidade da respiração. É um doce medicamento contra a anemia, a palidez, os suores. (...) Tem-se visto doenças inexplicáveis de mulheres curadas com uma valsa (...) A valsa é moral e educadora: acostuma as mulheres a ter dos homens uma ideia positiva e burguesa.”
“Nas costas de Inglaterra, debaixo de um clima frigidíssimo, um conhecimento perfeito da terapêutica e da higiene leva os habitantes a tomarem banhos de mar em todas as estações do ano e ainda nos maiores rigores do Inverno.” O mar de As Praias de Portugal é “um grande médico, um grande conselheiro, um grande amigo” (…) tanto para “as crianças fraquinhas, para as mulheres débeis, fatigadas”, como para “as grossas constituições linfáticas”.

Numa das poucas vezes em toda a vida que foi ao médico, Ramalho termina: “(…) O doutor, depois de medir a minha tensão arterial e de se inteirar dos diversos sintomas da minha psicastenia, mandou-me sair desde logo de Lisboa e ir fazer uma cura de espírito na oxigenada serenidade da floresta do Tirol ou junto da comunicativa mansidáo dos lagos na Itália ou na Suíça (…) aprender humildemente, na passageira mudança de ares e na suprema e inquebrantável beleza das coisas, a suportar mais docemente os Homens (...) ”

É notável como, quando se lê as obras de Eça de Queiroz ou Ramalho Ortigão, seja nas críticas ou nos hábitos aconselháveis a mudar, e sabendo que tudo foi escrito no século XIX, tanto se mantém contemporâneo e a precisar de rumo. Será que eram demasiado evoluídos ou nós demasiado atrasados? É uma pergunta frequente.

Talvez um pouco dos dois. Mas aqui se viu que juventude eterna não tem idade nem século. É, no espírito crítico e na capacidade de mudança, que está, efectivamente, o elixir…da intemporalidade.

domingo, 17 de julho de 2011

O belo é feio... E o feio é belo ?


                      

Nefertiti, uma das rainhas que mais marcou a história do Egipto.
XVIIIª Dinastia. Cerca de 1350 a.C.
Cópia do original em "lápislazuli"

Não deverá existir visão mais repetida do que a da face humana. Com muito mais do que um mero interesse intelectual, os 225 e poucos centímetros quadrados, independentemente da variação entre cada indivíduo, constituem a peça mais intimamente analisada da história da existência.
Examinada constantemente, em todos os detalhes do nariz, dos olhos ou da boca, a face é o centro de toda a vida emocional. Do nascimento à morte, liga-nos a amigos, à família e a todas as pessoas com um significado especial para nós. Poucas coisas são capazes de nos mover tão profundamente como a face de alguém que nos é querido.
Nefertiti foi uma das rainhas que marcou a história do Egipto. Esposa real de Akhenaton, (XVIII dinastia, cerca de 1350 anos a.C.) descoberta em Tell-El Amama, Nefertiti deve, ao seu busto, ser considerada a representação mais perfeita da beleza. Nefertiti, “a mais bela das belas”, como se vê nos seus traços, pescoço magnífico e olhar cativante, será realmente a mais bela mulher que existiu no mundo?

Em todos os tempos, filósofos e artistas deram ao Homem as suas definições do belo. Graças à iconografia de escultores e pintores é possível reconstruir testemunhos dos conceitos estéticos. Mas a fealdade poderá considerar-se, simplesmente, em oposição ao belo? Por um rosto desagradável ou por um corpo desproporcionado?  
Há frases populares como: “quem feio ama bonito lhe parece” que nos colocam dúvidas ou sugerem contradições. Será que todos acham que um homem ou uma mulher, com os olhos rasgados, é o ideal de toda a gente? Que os lábios grossos são desejados por todos os homens?

Umberto Eco escreve, em História do Feio (2007), que “se um visitante vindo do espaço entrasse numa galeria de arte contemporânea e visse rostos femininos pintados por Picasso e ouvisse os visitantes a julgá-los belos, poderia conceber a ideia errada de que, na realidade quotidiana, os homens do nosso tempo acham belas e desejáveis criaturas femininas com rostos semelhantes aos representados pelo pintor”, com os rostos totalmente distorcidos.

Mulher chorando. Óleo sobre tela (1937)
Pablo Picasso (1881-1973)
Tate Gallery - Londres

Hoje, vive-se num tempo em que os media, através do cinema e da televisão, afectam cada indivíduo, abordando os componentes visuais da emoção humana de uma forma contínua. Uma aparência agradável é hoje parte da aceitabilidade social e a face em particular desempenha um papel especial.
A forma da face, os olhos, a boca, os dentes – em particular aquando do sorriso - são os primeiros sinais visíveis que recebemos no contacto com os outros e é um desejo natural da vida em sociedade querer afectar os outros de uma forma simpática. Nunca um sorriso espontâneo e amigável deixou de provocar uma reacção positiva ao destinatário do gesto.
Actualmente, todas as barreiras da comunicação têm meios para ser ultrapassadas. Das mensagens escritas ao Chat, as pessoas falam menos ao telefone e muito menos escrevem cartas. Porém, o sorriso continua a ser não só a expressão que é universalmente mais apreciada e encorajada nas sociedades humanas, como também a que mais transcende as barreiras da linguagem entre diferentes pessoas ou culturas.
Assim como um pequeno franzir das sobrancelhas pode despoletar uma discussão entre um casal de namorados, pode uma ligeira sugestão de um sorriso iniciar uma conversa entre dois estranhos.
Sorrir é um fenómeno intemporal. É um tema que tem apaixonado cientistas. Desde o sorriso arcaico nas estátuas gregas ao sorriso jovial dos nossos dias que se sabe que representa um papel fundamental no bem-estar dos indivíduos.
Sorrir combate o stress e previne doenças. Ao acelerar a respiração e os batimentos cardíacos, baixa a tensão arterial e melhora a oxigenação do sangue. Estimula a acção do cérebro e exercita o corpo. Rejuvenesce, liberta e aproxima-nos dos outros.
Cada sorriso, seja ele encenado, espontâneo, involuntário, amistoso ou perverso, inicia-se sempre por uma reacção química ao nível do córtex cerebral humano. Trata-se, provavelmente, da única coisa que todos os sorrisos têm efectivamente em comum.
Na sua anatomia, os dentes naturais têm uma variedade infinita de formas, cores, texturas e arranjos diversos em cada indivíduo, criando cada sorriso diferente. Um dos aspectos mais intrigantes deste tema complexo, que é o sorriso, passa precisamente por compreender a maneira como pessoas, culturas e sociedades distintas avaliam, através de diferentes critérios, a aparência pessoal dos indivíduos.

O nosso sentido estético é, em parte, determinado pela era e pela cultura em que estamos inseridos. No Japão, em séculos passados, sem perder a feminilidade, as esposas dos samurais cuidavam da sua aparência com muito esmero e gostavam de manter a pele clara, mas pintavam os dentes de preto e tiravam as sobrancelhas, o que parece totalmente absurdo para a mulher ocidental que só se sente confiante quando tem um tom saudável, os dentes brancos, as sobrancelhas cuidadas, a boca desenhada com o auxílio de um lápis e preenchida por um batom e um blush que dê um aspecto luminoso ao rosto. Em algumas partes de África, as pálpebras são pintadas de preto, as unhas de amarelo ou roxo, o cabelo de várias cores e os dentes ora de preto, vermelho ou azul.
No arquipélago Malaio é vergonhoso ter os dentes brancos como os de “um cão” e, deste modo, limam os incisivos até ficarem com uma forma pontiaguda, parecendo uma serra, ou então perfuram-nos e inserem pedras preciosas. Em outros exemplos, os nativos da região superior ao Rio Nilo extraem os seus 4 dentes da frente, uma vez que não desejam “assemelhar-se com brutos”. Mais para sul, os Batokas extraem apenas os dois incisivos centrais superiores, o que certamente confere ao rosto uma aparência hedionda.
Na sociedade ocidental, imaginemos ver na rua uma pessoa desdentada: o que nos perturba não é a forma dos lábios, ou os poucos dentes que restaram, mas o facto de os dentes que ficaram não serem acompanhados pelos outros que lá deveriam estar. Não conhecemos aquela pessoa, aquela fealdade que nos envolve emocionalmente. Contudo, perante a incoerência ou incompletude daquele conjunto, sentimo-nos autorizados a dizer que aquele rosto “não é bonito”.
A reabilitação oral tem sido a solução para muitas destas pessoas. É certo que um conjunto de dentes apinhados, depois de colocados harmoniosamente, pode transformá-la muito mais bonita. É um facto que é possível eliminar, através do regresso de uma face sorridente, inúmeras inseguranças de uma vida. E certamente que não tem havido falta de empenho na Medicina Dentária para definir as orientações estéticas que lhe dizem respeito. Para além de todas as guias e linhas conhecidas, numa frase, a estética contemporânea é definida pelo desejo dos pacientes de que o seu tratamento represente harmonia e naturalidade. É, porém, uma tarefa mais árdua do que parece.
Em primeiro lugar, é importante não esquecer que, na vida diária, a pessoa não irá apenas sorrir. Num conjunto de outras situações irá também mostrar os dentes. A pessoa irá também chorar, falar, corar, meditar, espantar-se.
Em seguida, sorrir tornou-se muito mais do que uma simples reacção química, uma série de contracções musculares ou um mecanismo fisiológico. É o espelho de um conceito altamente sofisticado de expressão das emoções, de modo de comunicação e de interpretação visual e cognitiva, com inúmeros significados. Um farol de desejo com interesse psicológico, antropológico e social.
E, por fim, é preciso que a experiência da beleza implique uma contemplação desinteressada e pode ser um risco chamar a atenção para defeitos estéticos que não existem na mente da pessoa que procura tratamento. Para além de que o resultado final poderá exprimir desagrado.
A natureza deve ser usada com o melhor exemplo. Antes de qualquer irreversibilidade, considere-se sempre até que ponto tinham razão as bruxas que no primeiro acto de Macbeth gritam: “o belo é feio e o feio é belo…”.
Abrir os olhos e apreciar a imensa complexidade e diversidade de cada rosto, e a cada momento retirar a efemeridade de cada sorriso genuíno, é uma oportunidade única de observar as mil e uma formas de beleza em que a vida se pode exibir. Primeiro goste de si e só depois goste (ou trate) do seu sorriso.


Estátua de Reglindis, também conhecida por Linda Reglindes (989-1016)
Esta personalidade da Idade Média está no coro da Catedral de S. Pedro e S. Paulo em Naumberg
(Reglindis era filha do Rei da Polónia Boleslau I e foi casado com o margrave Hermann de Baden)


Publicado na Revista Moda & Moda - Verão 2011
Disponível em:

sexta-feira, 15 de julho de 2011

O senhor Águas - António Lobo Antunes

Nunca admirei tanto um atleta como admirei José Águas. Para quê, portanto, ir ao futebol se ele já não se encontra no estádio?

Há mais de trinta anos que não assisto a um jogo de futebol. Não conheço os estádios novos, vejo, às vezes, um bocadinho na televisão. Mas entre os dez e os vinte anos não falhava um jogo do Benfica. E não falhei enquanto Águas jogou. Claro que não era apenas Águas: era Costa Pereira, Germano, Ângelo, Simões, Eusébio, Cavém, o grande Mário Esteves Coluna que Otto Glória considerava o melhor jogador português, outros mais artistas que jogadores, como José Augusto, por exemplo, a todos estou grato pela beleza e a alegria que me deram, porém nunca admirei tanto um atleta como admirei José Águas. Para quê, portanto, ir ao futebol se ele já não se encontra no estádio? Era a elegância, a inteligência, a integridade, o talento, e ao pensar em escrever o meu desejo era ser o Águas da literatura. Vi Pelé, Didi, Nilton Santos, Puskas, Di Stefano, Santamaria, tantos outros génios, no tempo em que o futebol não era ainda uma indústria nem os jogadores funcionários competentes, comandados por esse horror a que chamam técnicos: era pura criação, uma actividade eufórica, uma magia cinzelada, uma nascente de prazer, uma inspiração, um entusiasmo. Águas foi tudo isso e, muito novo, ganhou o respeito dos colegas, dos adversários, dos jornalistas da época, que os havia de grande qualidade, Carlos Pinhão, Carlos Miranda, Aurélio Márcio, Homero Serpa, tantos outros. Não jogava futebol: criava futebol, respirava futebol, inventava futebol, e teria sido um privilégio para mim conhecê-lo. Não para falar com ele, para o ouvir. A sua beleza física invulgar distinguia-o de todos os outros, a forma de se mover em campo era única, a autoridade sobre os companheiros natural e humilde. Os miúdos que iam comigo à bola chamavam-lhe senhor Águas, sem sonharem que era desse modo que Simões e Eusébio o tratavam, como tratavam Coluna.
Senhor Águas, senhor Coluna. Reconhecíamo-lo, do alto do terceiro anel, no estádio de então, onde, de tão longe, os jogadores minúsculos, pelo modo de correr, se deslocar no campo, passar, rematar, reconhecíamo-lo pelos seus golpes de cabeça, inimitáveis, pelo sentido da ocupação do espaço, pela simplificada geometria do seu futebol. Não tinha a garra de Ângelo ou Cavém, a força de Coluna, o gigantesco talento de Eusébio, o poder do drible de Simões, a velocidade de José Augusto: era uma espécie de rei sereno e eficaz, um aristocrata perfeito. Até a andar os olhos ficavam presos nele, na harmonia dos gestos, no modo de ajeitar bola, e eu, criança de dez anos ou adolescente de quinze, pensava tenho de trabalhar mais esta página, ainda não chego aos calcanhares de José Águas. Escrever como ele jogava, com a mesma subtileza e a mesma eficácia. Escrever como a equipa do Benfica, umas vezes à Ângelo, outras à Germano, outras à Coluna, e finalizar à Águas. Nunca deve ter ouvido falar em mim nem podia adivinhar que um garoto qualquer o tomava não apenas como mestre de futebol mas como mestre de escrita. Só, mais tarde, certos saxofonistas de jazz, Bird, Coltrane, Webster, Coleman, Hodges, alguns mais, tiveram, sobre o meu trabalho, influência semelhante. Mas Águas foi o meu primeiro e indisputado professor: escreve como ele joga, meu estúpido, aprende a escrever como ele jogava. Como morava em Benfica via-o, às vezes, no autocarro do clube e ficava, pasmado de admiração, a fitá-lo. Isto lembra-me o meu irmão Nuno chegando a casa de dedo no ar

- Toquei no Eusébio, toquei no Eusébio

como provavelmente, eu o faria, porque na infância e na adolescência o futebol era, para além de uma aprendizagem do mundo, um prazer infinito. A cor dos equipamentos

(o meu amigo Artur Semedo:

- Não sou um homem às riscas, sou homem de uma cor só)

a entrada em campo, o hino, tudo isto me exaltava e fazia feliz. E as vitórias, comemoradas em Benfica com bebedeiras eufóricas. Uma das minhas glórias secretas, confesso-o agora, consiste em ter visto a fotografia do meu pai no balneário do hóquei em patins do Benfica, de ele ter estado no Campeonato da Europa de 1936, em Estugarda, com vinte ou vinte e um anos, e de brincarmos com uma caixa de lata cheia de medalhas, a que o meu pai não dava importância alguma e eu considerava inestimáveis. Há pouco, a minha mãe

- O que faço eu a isto?

exibindo-me uma espécie de troféu ou de placas num estojo, que alguns anos antes de morrer a Federação de Patinagem lhe entregou, juntamente com outras antigas glórias, e que me recordo de o meu pai, que não saía, ir receber com satisfação secreta. Mas, claro, eu era só filho do Lobo Antunes, não era filho do Águas, e ainda sei medir as distâncias. Portanto, o que vou eu fazer a um campo de futebol se ele já não joga? Seguir os funcionários competentes de um negócio? Assistir ao bailado dos técnicos? Ver a fantasia substituída pela sofreguidão, a ambição pela avidez, o amor ao clube pela violência idiota? Claro que continuo a querer que o Benfica ganhe. Claro que sou, como em tudo o resto, parcial, sectário, por vezes sem bom senso algum. Mas há séculos que não sofro com as derrotas e, sobretudo, não choro lágrimas sinceras com elas: estou-me nas tintas. Contudo voltaria a trotar, radiante, para assistir à entrada em campo de Costa Pereira, Mário João, Germano, Ângelo, Cavém, Cruz, José Augusto, Eusébio, Águas, Coluna e Simões, a agradecer-lhes o facto de me terem, durante anos e anos, colorido a existência. E talvez no fim do jogo, postado junto ao autocarro, quando os jogadores saíssem do balneário, o senhor Águas me apertasse a mão.

António Lobo Antunes

in Visão

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Reabilitação oral: o mistério do bigode chinês


Retrato, do latim retrahere, que significa copiar, é a representação de uma figura individual ou de um grupo elaborada a partir de um modelo.
A difusão da retratística acompanhou-se dos anseios da corte e da burguesia urbana em projectar as suas imagens, na vida pública e privada. Se, no passado, a pintura era a forma encontrada de retratar pessoas e situações, nestes séculos mais recentes a fotografia veio “substituir” as obras dos grandes artistas.
O principal objectivo da reabilitação oral é a recuperação normal das funções de mastigação, fonação e estética. É deveras interessante o valor que as pessoas passam a dar estes actos, tão inatos e naturais, apenas quando estão perdidos.
As pessoas deixaram de ir ao dentista para tratar dos dentes. Passaram a ir ao dentista para tratar de si. E a Medicina Dentária actual exige o tratamento de um sistema que inclui a face, a gengiva, os lábios, os dentes, os maxilares e vários músculos, ligamentos e articulações.
Reabilitação, enquanto definição, é um processo gradual de restabelecimento das funções perdidas aumentando, assim, a qualidade de vida de cada um de nós. Deste modo, não é fácil (nem correcto) realizar uma reabilitação oral num curto de espaço de tempo.
Cada caso é diferente e merece ser estudado ao mais ínfimo pormenor. Com o objectivo de que, a cada sessão, o paciente fique melhor do que chegou, o diagnóstico e plano de tratamento devem ser bem considerados e desenhados.
Acontece que as consequências de alguém que perdeu os dentes são, para além da reabsorção óssea dos maxilares e das alterações da coordenação muscular e naturais influências negativas na mastigação e na fala, consideráveis modificações na estética facial do indivíduo.  E, com isto, acrescem os factores psicológicos de tristeza em frente ao espelho, insegurança e falta de confiança decorrentes.
Leonardo da Vinci é considerado, por muitos, como o maior génio da história.
Foi pintor, arquitecto, engenheiro, cientista e escultor do Renascimento e são impressionantes os seus estudos em ciências e as criações de engenharia que realizou, que se encontram registadas em cadernos que incluem perto de 13.000 páginas de notas e desenhos que fundem arte e ciência. É raríssimo que a história da cultura ocidental ofereça um tal casamento entre ciência e arte.
Os seus trabalhos artísticos são reconhecidos, onde se incluem obras como A última ceia ou, para citar talvez o mais conhecido,   A Mona Lisa.
Entre diversas teorias, existem algumas que apontam essa obra como um auto-retrato de Leonardo, mas com feições femininas, outras o amante que ele levou consigo para Paris quando foi convidado da corte de François Iér, explicando assim o enigmático sorriso.
No conjunto de retratos elaborados por Leonardo da Vinci, os traços faciais descritos como característicos de quem perde os dentes são notórios. E devemos ter em conta que se tratava de uma época pródiga em perda de dentes, já que ainda não existiam os actuais conhecimentos.
Aliás, os seus reconhecidos trabalhos de Anatomia mostram-nos que a perda de dentes à época era uma realidade e será que se pode, inclusivamente, suspeitar se, no seu último auto-retrato, o próprio não padeceria de tal condição?
Note-se a marcação dos sulcos naso-genianos, a ausência do filtro labial, as comissuras labiais invertidas, os lábios finos, o terço inferior da face diminuído e um prognatismo relativo, embora a barba ajude a disfarçar.
O terço inferior da face, ao longo dos anos e com o aumento da idade, pode ser exposto a diversas modificações. O aumento do laxismo dos músculos deixa marcas na face, origina rugas e afecta a posição da boca.
Esta situação, juntamente com patologias dentárias, nomeadamente desgaste dentário ou perda dos dentes, sobretudo os dentes posteriores, pode originar um decréscimo da altura da face.
Assim, os tecidos em volta da boca afundam, o desenho do lábio desaparece, as rugas acentuam-se e a aparência facial envelhece. Numa linguagem simplificada, a perda de dentes “junta a ponta do queixo à ponta do nariz”.
A restauração da altura facial e dos tecidos moles é um passo fundamental em qualquer pessoa que procura tratamentos de estética do rosto. Apenas a reabilitação oral conduz ao plano correcto a que melhor respondem os requisitos estéticos e funcionais da face.
O mistério do bigode chinês (o acentuar das rugas naso-genianas) é um dos principais motivos de consulta que as pessoas procuram nas clínicas de cirurgia plástica.
Contudo, a medicina dentária e a cirurgia plástica facial não podem ser consideradas especialidades separadas. As exigências multidisciplinares actuais exigem que andem de mãos dadas. Todos os tratamentos de rejuvenescimento facial devem incluir a procura de uma proporção dentária adequada e uma articulação mandibular perfeita.
Apenas o diagnóstico completo é o mais correcto. Antes de se equacionar tratamentos de rejuvenescimento, há que diagnosticar os sintomas e seleccionar as técnicas adequadas para os atenuar.
Ainda não foi hoje que o Sorriso de Mona Lisa se desvendou. Mas Da Vinci mais uma vez nos ensinou: “A pintura deve parecer uma coisa natural vista num grande espelho.” Se, no nosso dia-a-dia, procurarmos elevar o nosso trabalho à arte, a boca e o sorriso natural tornam-se no centro da face e da confiança de todas pessoas.


Fernando Arrobas
Publicado na Revista Moda & Moda . Nº 104 . Verão 2011