sábado, 18 de junho de 2011

E via-se lhe um dente podre...

"(...) na larga sala a noite passava-se espiritualmente. Macário não pôde dar todos os pormenores históricos e característicos daquela assembléia. Lembrava-se apenas que um corregedor de Leiria recitava o Madrigal a Lídia: lia-o de pé, com uma luneta redonda aplicada sobre o papel, a perna direita lançada para diante, a mão na abertura do colete branco de gola alta. E em redor, formando círculo, as damas, com vestidos de ramagens, cobertas de plumas, as mangas estreitas terminadas num fofo de rendas, mitenes de retrós preto cheias da cintilação dos anéis, tinham sorrisos ternos, cochichos, doces murmurações, risinhos, e um brando palpitar de leques recamados de lantejoulas. "


" - Muito bonito, diziam, muito bonito! E o corregedor, desviando a luneta, cumprimentava sorrindo - e via-se-lhe um dente podre."


Eça de Queirós. Singularidades de uma rapariga loura

Voltei a ler Os Maias



Nunca se ouviu dizer que um dos maiores defeitos do nosso ensino provém exactamente da atenção dada ao “saber” em detrimento do “conhecer”?

O critério que preside à formação do espírito de um jovem é todo ele dominado por uma intenção instrutiva: primeiro, é preciso passar por uma fase em que cada um de nós recolhe a herança cultural que as gerações que nos precederam foram entesourando para nós. E, seguidamente à erudição, que cada um de nós recebe através dos mestres e dos compêndios (aquela parte que é património comum da humanidade – leis da matemática, regras da gramática, etc. …) deve juntar-se, ao longo da vida, a memória e a inteligência, a sensibilidade e a emoção.

Os Estados Unidos foram o primeiro país do Mundo a pôr em prática o processo de “leituras digeridas” (Reader’s digest). Portugal decidiu arranjar-se à moderna e nos tempos de Ensino Secundário não é conformável a obrigação e a imposição, na disciplina de Português, de ler as obras literárias.
A verdade é que a obrigação e imposição suscitam nos jovens um sentimento de rebelião traduzido numa vontade de fazer precisamente o contrário, conduzindo os alunos a refundirem-se em resumos, fotocópias e apontamentos. A repercussão do disfarce: Não desfrutam da obra e descuram em cultura.
Mais tarde, por vezes longe das salas de aula dos antigos Liceus, encontra-se outro sabor nos livros: anseia-se que se tenha mudado de página e que se tenha usufruído de tudo o que ela pudesse oferecer.

Lê-se com vontade; não com o intuito de dividir uma frase em orações, saber o tempo do verbo, identificar todas as figuras de estilo e “brilhar” em exame.
É mesmo verdade! Voltei a ler Os Maias! Interessei-me e, como se não bastasse, após terminar, documentei-me, investiguei e relembrei toda essa fulgurante época literária que foi o Realismo

Em vez de apreender, aprendi e agora partilho. O realismo foi uma corrente de expressão literária que surgiu em oposição ao movimento literário anterior – o Romantismo. Tratava-se de uma nova atitude perante a literatura e as artes plásticas e que era inspirada na vida real, no quotidiano, na crítica social ao ambiente vivido no seio da burguesia, à denúncia quanto à miséria vivida nos bairros populares e degradados.

Em contraponto com o Romantismo, que se definia como a apoteose do sentimento, exacerbando sentimentalismos utópicos, realçando excessivamente paixões amorosas chegando até a ser, quantas vezes, enfático e “piegas”, o Realismo, como dizia Eça de Queiroz, “é a anatomia do carácter”, era o apontar a dedo a realidade observada. O realismo procurava a realidade autêntica e não a realidade que, entretanto, estava deformada pelo mundo romântico.

Este movimento literário era também um movimento ambicioso. Não se limitando a descrever as realidades concretas do Homem e da sua vida quotidiana, preconizava uma ideia de mudança e de modificação da realidade social. Só que para que tal acontecesse, este movimento encerrava a convicção que para modificar a realidade era necessário descrevê-la com objectividade. Este método decorria do “positivismo” de Augusto Conte, que propunha uma rigorosa observação e experimentação como único caminho para chegar ao conhecimento da realidade.

Um dos grandes expoentes do Realismo foi o saudoso Eça de Queiroz. Eça chamou a si a glória e “ergueu um dos monumentos mais altos de Arte e cultura deste país”: Os Maias.
Os Maias constitui sobretudo uma análise social do quotidiano lisboeta do século XIX e encerra uma forte crítica da realidade vivida então. Num argumento que desde cedo ouvi o meu Pai nas suas ferozes discussões com os outros encarregados de educação dos meus amigos na escola, exemplo bem significativo desta crítica feroz é o facto de ser atribuída à personagem João da Ega (que muitos analistas consideram tratar-se do próprio Eça) a escrita de um ensaio literário As Memórias de um Átomo. Este (João da Ega), ao longo de Os Maias vem, permanentemente, sendo inquirido sobre para quando a conclusão desse livro ou ensaio. Até que mais tarde responde: “Estou à espera que o País aprenda a ler”. Esta frase célebre encerra em si mesma uma tremenda crítica à instrução pública, à educação e ao problema do analfabetismo. Curioso é – e isso é que vem ao caso – o quanto essa crítica é actual.

Incrível, como quando lemos Eça de Queiroz, e sabendo que tudo foi escrito há dois séculos atrás, tudo se mantém tão contemporâneo e, ainda hoje, a política, tal como a sociedade, precisa de uma mudança.
Será que Eça é que era demasiado evoluído ou nós demasiado atrasados?
Talvez os dois. Talvez por isso, em tempos de crise, o devêssemos relembrar mais.

VI - A costa Adriática. Saudades de Lisboa


Mais uma vez fomos cumpridores nos horários e largámos Budapeste à hora decidida por todos. Mais uma longa viagem de comboio nos levaria novamente ao local por onde já tínhamos passado durante um sonho constantemente interrompido numa carruagem. Voltávamos a Zagreb, na Croácia.

A Croácia é um país com uma história recente: república democrática apenas desde 1990, desde a adopção da constituição, depois dos conhecidos anos de guerra que afligiram a Ex – Jugoslávia. É, pois, um país cuja população com marcas profundas desses anos, pois qualquer família tem um Pai, um primo, um tio, um irmão, ora ferido da guerra, ora perdido, ora marcado.

Embora a sua triste história, estes dias na Croácia, porém, julgo que nos surpreenderam pelo seu desenvolvimento turístico e simpatia do povo.
Chegámos a Zagreb na manhã quente do dia 5 de Agosto. Zagreb estava deserta, tal como Lisboa no oitavo mês do ano. Quente e sem pessoas, todas deslocadas para outros lados mais apetecíveis para aproveitarem as suas férias.

E foi assim mesmo que fizemos. De mala às costas, novamente nos deslocámos até ao posto central de venda de bilhetes. Aquele não ia ser decididamente o nosso ponto de paragem.
Zagreb era no Norte da Croácia e nós queríamos era ir a descoberta das praias que tantos livros e pessoas já haviam referenciado. O próximo destino era Zadar, o ponto mais a Oeste da região Dalmácia.

Lembro-me que comecei a escrever este texto enquanto estávamos a apanhar sol em plena Costa Adriática da Croácia, a poucas dias de começar a fase de retorno, que nos levaria de volta a Portugal. Dentro de menos de duas semanas sabia que pensaria: Que saudades desta água tão límpida e quente, que não se compara com a nossa tão fria.
Mas, por outro lado, também tinha saudades da nossa areia, que por aqui não existe. Percebi ali, naquele instante, que é impossível conseguir ter o melhor de dois mundos.

Ainda andámos por Roma, Sul de França, Barcelona. Mas a oportunidade e a inspiração para escrever não chegaram. E escrever a posteriori não dará o mesmo valor ao relato, mas que estou certo que perdurará para sempre nas nossas memórias. Toda a cidade de Roma a pé num dia, o comboio de refugiados até ao Sul de França e a noite na pensão de duas estrelas junto à estação de comboios de Montepellier e as Ramblas.

Estamos agora no último comboio, na última das dez viagens que o nosso bilhete permite.
Faltam poucas horas para chegar a Lisboa e, por fim, deixarmos de nos ver 24 horas sobre 24. Nestas viagens as amizades constroem-se. Porém, já têm de existir de antemão. A estrada, com curvas, contra-curvas, muitas rectas, alguns buracos no alcatrão, já têm de existir. A Europa, os sítios que visitamos, e o Mundo que juntos desejamos, apenas ajuda a aumentá-la, tornando-a maior e com mais paisagens bonitas.

Durante 20 dias, com mais do que cinco alterações no roteiro inicial, estivemos em Espanha, França, Itália, Eslovénia, Hungria e Croácia. Visitámos ao todo 7 países, incluído o Vaticano.

À ida, o mais difícil é partir. À vinda, o mais difícil é chegar. Contudo, julgo que podemos concluir que viajar nos dá tranquilidade, mas também cedo chegam as saudades de Portugal. E lá fora percebemos que em muitas coisas o nosso país não é assim tão mau. Como Eça comunicara em tempo a Ramalho: “Estar longe é um grande telescópio para as virtudes da terra onde se vestiu a primeira camisa.” O melhor de viajar é sentir falta. Viajar nunca é demais. Ir além fronteiras, abrindo a mente. E voltar revitalizado.

Com poucas páginas restantes no meu caderno para escrever, não seria capaz de terminar este roteiro, repleto de textos que sempre quiseram ser curtos, com pouco cheiro, mas alguma água na boca para que quem leia procure a sua própria viagem e saiba escolher os seus companheiros, sem escrever que vos adoro, meus amigos, meus camaradas de descoberta de lugares e de nós próprios, meus irmãos.