quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Bicho carpinteiro

Notícia de última hora: no ranking das expressões favoritas utilizadas por comentadores e políticos, “gorduras do Estado” foi ultrapassada no primeiro lugar por “buracos na madeira”. Segundo consta, foi detectado um “big hole” orçamental nas contas da Ilha da Madeira.

À semelhança de outros escândalos, durante dias fervilham as injúrias e voam os desmentidos. Assim, estável no terceiro lugar mantém-se sempre a expressão “cabala”. Dada a sua utilização amiúde, esta, nos últimos anos, nunca apresenta grandes oscilações.

Particularmente utilizada pelos nossos políticos no sentido de “armadilha”, será que alguém, todavia, sabe ao certo o que essa expressão significa?  Julgo que cumpre, talvez, por fim, explicar a sua origem. A expressão Cabala deriva do verbo hebraico lecabel, ou receber. No fundo, encerra a codificação simbólica dos mistérios do Universo com Deus no centro. De que mistério falam tanto os políticos, afinal? É que mistério só vislumbro um: ao que parece, na mesma semana em que a Justiça se declarou incompetente para julgar os antigos administradores do “nosso” banco, a “nossa” Madeira transformou-se em queijo suíço.

Existem alguns insectos que se alimentam de Madeira, deixando pequenos “buraquinhos”, que podem estragar e causar algumas alergias aos mais sensíveis. Nestes casos, um insecticida especial ataca o problema na raiz do mesmo e evita o alastramento da praga. No entanto, se o fenótipo é um daqueles insectos “calvos”, “prepotentes”, “que gostam de andar de cuecas na rua”, “donos de um profundo desrespeito por tudo e por todos”, “sem noção da realidade” e “com um estranho alto protecionismo do seu partido”, aí o caso é grave. Para que o insecticida tenha o efeito pretendido, e mais tarde a Madeira não seja novamente atacada e se estrague de uma forma definitiva, normalmente são necessárias umas algemas e uma população consciente na hora da “cruzinha”.


Julgo que seria tempo de o país habituar-se a deixar de lado esses infindáveis bichos carpinteiros, escaravelhos de uma nação, e dar mais valor aos que, como eu e provavelmente o leitor, mal devem algum dinheiro, por pouco que seja, ficam é logo com bicho-no-corpo-inteiro.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Gravatas contra a crise



Lembrada no colarinho dos ricos e dos dandies “do bom gosto”, particularmente em forma de lenço ou como laço, a gravata atravessou séculos e continentes.

A sua origem é sobejamente conhecida. O termo gravata deriva do francês "cravate". Esta expressão, por seu turno, é uma corruptela de "croat", em referência aos croatas, que, segundo reza a história, foram os primeiros a apresentar a indumentária à sociedade parisiense.

Na verdade, há registos do uso de lenços no pescoço por soldados chineses, no século III A.C. e também entre o Exército da Roma Antiga, como sudário. No entanto, a história mais conhecida sobre a origem da gravata data de 1618, quando um regimento croata passou por Paris durante a Guerra dos Trinta Anos.

Ornamentados de um lenço ao pescoço, os croatas influenciaram a moda Francesa, instalando-se a gravata no pescoço e na corte do Rei Louis XIV.

A gravata sempre se evidenciou como uma peça de distinção social. Símbolo de elegância na sala de aula ou num jantar social, de distinção numa conferência ou no consultório médico, de poder em reunião ou ao almoço, de profissionalismo e segurança no parlamento ou na televisão. Mas, na verdade, o que aconteceu ao país, de Alexandre O’Neill, “engravatado todo o ano e a assoar-se à gravata por engano”?

É cada vez mais evidente o abandono desta indumentária. Na Alemanha, entre 1995 e 2005, as vendas de gravatas caíram de 20 milhões para 10 milhões de unidades anualmente e, nos Estados Unidos, mesmo antes da eclosão da invariável crise, segundo um estudo do Instituto Gallup publicado no Wall Street Journal, o uso da gravata já andava em queda entre os homens de negócios americanos.

O primeiro sinal de perda de prestígio da gravata entre os altos executivos ocorreu em meados dos anos 80, com a instituição do “casual Friday”, uma medida das empresas norte-americanas em que, às sextas-feiras, os colaboradores poderiam substituir o fato e gravata por calças de ganga e polo.

Actualmente, o conceito de que ter poder é usar gravata diferenciou-se. Ter poder é, nos dias de hoje, vestir-se como bem entender. Uns dirão que os consumidores simplesmente perderam o gosto pela peça. No entanto, a verdade passa por, assim que as pessoas têm opção, deixam de usar gravata.

Em nome do conforto, o mercado interpretará que a gravata só irá sobreviver se puder ser um acessório opcional a ser usado pelos verdadeiros apreciadores. Rapidamente, teses serão publicadas comprovando que que quem utiliza gravata todos os dias tem maior probabilidade de contrair esta ou aquela doença. Ou, tal como foi premissa para o despacho do ministério da Agricultura de dispensar todos os colaboradores de usar gravata, não utilizar gravata permite baixar 2º C na temperatura do ar condicionado, permitindo, assim, poupar energia.

Ao mesmo tempo, por coincidência, dados no Brasil, revelam que nunca esta peça de vestuário, principalmente masculina, foi tão vendida. Estima-se que foram vendidas, no ano de 2009, perto de 18 milhões de gravatas, sendo cerca de 11 milhões produzidas no próprio país.

Não nego que, após esta ascensão no Brasil, a gravata talvez seja condenada igualmente ao mesmo caminho que vitimou os suspensórios. Mas, uma mera análise da geografia global permite-nos, pelo menos, levantar a dúvida de que a utilização / não utilização da gravata coincide com o ritmo de crescimento económico / recessão económica nos últimos anos.



Usar, ou não, gravata não é sinónimo de nada. Contudo, mesmo que exista a opinião contrária, alguns traços de formalidade incentivam a confiança, o respeito do trabalhador por si próprio e da sua família, factores essenciais para a produção, que, por sua vez, incutem vontade de trabalhar e a sensação de uma representação com rigor do seu produto ou valor. 


Em Londres, talvez a maior praça financeira do Mundo, as mulheres continuam a suportar estoicamente os saltos altos e os homens vestem-se a rigor e não me recordo de ver algum de nó largo na fausta gravata cor-de-rosa.
Nos tempos que correm, importa lembrar que foi particularmente na década de 1930, na época de recessão económica, que o estilo da gravata moderna nasceu. As gravatas ficaram largas, os ombros cresceram, e as lapelas também. Interpretou-se como um contraponto de uma fragilidade em que o homem precisava de se tornar forte novamente.

Tal como no tempo da Grande Depressão, hoje é preciso entender esta mensagem de novo. Se as formas actuais “enforcam” pelo colarinho, então que novas “gravatas” se inventem.

Se possível, com um Ipod. De preferência, com um pouco de lucidez, respeito e honra incorporados.

sábado, 3 de setembro de 2011

Carta aberta ao Ministro da Saúde

Exmo. Sr. Ministro da Saúde do XIX Governo Constitucional de Portugal

Senhor Licenciado em Organização e Gestão de Empresas

Dr. Paulo Macedo

Assunto: O erro em Portugal

Designa-se por transplante, ou enxerto, a intervenção cirúrgica mediante a qual se insere, no organismo hospedeiro, um órgão ou um tecido recolhido num dador. Para efeitos do transplante, realizam-se, entre tecidos enxertados e o organismo hospedeiro, os fenómenos vitais sob as designações de sobrevivência, adaptação e enraizamento e os enxertos podem ser classificados em auto-enxertos, isoenxertos, aloenxertos e xenoenxertos.

Os aloenxertos constituem o transplante clínico comum em que uma pessoa doa um órgão a um indivíduo geneticamente diferente. Entre estes, podem ter-se em consideração, teoricamente, as glândulas endócrinas, como os ovários, a hipófise, a tiróide, o baço, o pâncreas e os testículos e, além disso, vasos sanguíneos, tecidos ósseos, medula óssea, nervos, tendões, pedaços de pele, córnea (ainda que não seja vascularizada, é tecido vital e, por isso, define-se sempre como um transplante). Mas, assumem um particular relevo os transplantes de órgãos integrais como o fígado e o rim, que se pode realizar ex vivo ou ex cadaver, o transplante de pulmão e o transplante de coração, que só pode ser feito, obviamente ex cadaver. Nestes incluem-se ainda, embora em menor escala no que diz respeito ao número de casos, a mão e a face, sendo que uma cirurgia recente incluiu o transplante da mandíbula, os dentes correspondentes e parte da língua.

Estou certo que isto é do conhecimento de V. Exa, sobretudo após a decisão que tomou. Contudo, pareceu-me importante realizar esta pequena revisão antes de avançar para o assunto sobre o qual lhe escrevo esta carta.
Considere os parágrafos anteriores apenas como uma pequena atenção com V.Exa, tal como espero da sua parte, quando me escreva de volta, a resposta com os seguintes dados, visto que a sua especialidade são os números:

Sabe quantos doentes com insuficiência renal são mantidos vivos através de hemodiálise, em Portugal? Nestes doentes, a única forma deixar de realizar hemodiálise para toda a vida, por muitos considerada "a prisão sem grades", é conseguir a doação de um rim (cadáver ou dador vivo), para que possa ser submetido a um transplante.

Sabe V. Exa quantos doentes com diabetes mellitus severa são mantidos vivos através de injecções diárias de insulina, cuja vida seria altamente melhorada com o transplante pancreático?

Sabe V. Exa. que, no que diz respeito aos candidatos a transplante de coração, fígado e medula óssea, que apresentam disfunção severa e terminal, estes morrem sem o transplante pois, diferentemente do rim, não é possível prolongar a vida de doentes que precisam de transplante hepático ou cardíaco?

Sabe ainda que uma das principais causas para o transplante de fígado é a paramiloidose, doença descrita pela primeira vez por Corino de Andrade, em 1952? Em Portugal, o maior foco da doença, existem mais de 600 famílias sob acompanhamento com mais de 2000 casos sintomáticos.

Senhor Ministro:

Desde a Antiguidade, que se encontram vestígios do interesse pelo conceito da utilidade clínica da transplantação de partes do corpo, substituindo partes definitivamente lesadas, por regiões anatómicas idênticas, provenientes de corpos saudáveis.

Em várias representações artísticas, encontra-se um dos milagres mais conhecidos dos dois irmãos medicos Cosme e Damião (300 d.C.), santos padroeiros da transplantação, que exerceram sempre a profissão sem cobrar quaisquer honorários.
Na imagem assiste-se à transplantação da perna de um negro (ou de um mouro) que acabara de falecer, substituindo a perna doente que se encontrava gangrenada.

Milagro de San Cosme y San Damian
Pedro Berruguete (1450-1504)
Museo de la Real Colegiata de San Cosme y San Damian de Covarrubias. Burgos. España.



Embora na esfera das crenças e lendas, acredita-se que foram estas histórias que levaram à vontade de outros fazerem novas abordagens e tentativas de sucesso para o tratamento dos doentes. E foi apenas, no século XX, com a aplicação da Ciclosporina, uma medicação imunosupressora, descoberta em 1972 por Jean-François Borel e apenas aprovada em 1983, para impedir o fenómeno de rejeição dos transplantes,que se melhorou, de forma notável, o prognóstico e a qualidade de vida dos doentes.
Como pode confirmer, a história é recente no que respeita ao transplante de órgãos ter deixado de ser um tratamento experimental e heróico para se converter numa terapia consolidada com uma percentagem maioritária de êxitos.

V.Exa., que tem tanto gosto pelos números, deveria saber que, em Portugal, até 2009, foram transplantados 25630 doentes e que, apenas antecedido pela vizinha Espanha, somos o país na União Europeia com maior número de dadores. Na relatório do Conselho Europeu, International Figures on Donation and Transplantation – 2010, Portugal é cotado como um país de referência neste campo. Não só pela evidência dos números, como pelo qualidades dos seus serviços.

Nos últimos anos, foram escritas teses universitárias em Portugal acerca da qualidade de vida dos doentes transplantados, abordagens psiquiátricas ou, como no meu caso, a importância dos cuidados de saúde oral neste tipo de doentes, uma vez que podem apresentar uma variedade de lesões orais devido à acção directa da medicação ou em consequência da imunosupressão induzida, onde se incluem, entre outras, infecções por bactérias, vírus e fungos, leucoplasias e lesões malignas. Isto é, em volta da transplantação, muito provavelmente com o seu desconhecimento, cimentaram-se àreas no domínio da multidisciplinariedade da saúde e da investigação (umas das outras grandes apostas do seu Governo…).

Tínhamos entrado numa era em que a Transplantação, como acto cirúrgico com elevada taxa de sucesso, não tinha como única métrica do sucesso apenas a sobrevivência do doente. Interessavam estratégias que contribuissem para a sobrevivência, mas também para o resultado geral e para a melhoria da qualidade de vida destes doentes.

Nem tudo eram rosas, mas havia um caminho que se percorria. Até que apareceu, perdoe-me, Vossa Excelência. E, à semelhança do que outros portugueses fizeram em momentos de elevado prestígio nacional, aparece sempre alguém que destrói a escola que tem vindo a ser construída.

Diga-me V.Exa. que tanto sabe de números:

O que foi feito das ideias do Infante D. Henrique, quando a nossa querida Escola Náutica em Paço de Arcos é remetida para a sobrevivência? Que apoio é dado aos grandes escritores de língua portuguesa que, inclusivamente, levaram o nosso Prémio Nobel da Literatura a viver em Lanzarote e António Lobo Antunes a afirmar, sem pudor, que não aceita “em Portugal qualquer espécie de honrarias por não dar ao meu país o direito de me julgar”? Até Camões só se inspirou para escrever Os Lusíadas numa caravela longe daqui.

Voltando à transplantação, não seria lógico que, já que somos a cauda da Europa em tantos outros sectores, não deveríamos investir em mantermo-nos nos primeiros lugares nos sectores em que já lá estamos? V. Exa. questionar-se se o país pode, efectivamente, sustentar o actual número de transplantes é uma declaração muito infeliz da sua parte, que estou disposto, como português cansado de dar tanto poder aos governos, a perdoar.
Para isso, terá, no entanto, de admitir que o senhor revela uma total falta de rumo e ambição para desenvolver o país, repetindo o eterno erro de Portugal: nunca apostar naquilo em que realmente se tornou competente e capaz.

É que, permita-me, Senhor Ministro, antes de saber de números e economia é preciso também saber de história. A grandeza da medicina de todos os tempos foi a de não aceitar a doença e a morte como naturais. Infelizmente, enquanto muitos aspectos da história progridem, outros não mudam.

Receba as minhas mais cordias saudações contribuintes,

Fernando Arrobas da Silva