sábado, 3 de setembro de 2011

Carta aberta ao Ministro da Saúde

Exmo. Sr. Ministro da Saúde do XIX Governo Constitucional de Portugal

Senhor Licenciado em Organização e Gestão de Empresas

Dr. Paulo Macedo

Assunto: O erro em Portugal

Designa-se por transplante, ou enxerto, a intervenção cirúrgica mediante a qual se insere, no organismo hospedeiro, um órgão ou um tecido recolhido num dador. Para efeitos do transplante, realizam-se, entre tecidos enxertados e o organismo hospedeiro, os fenómenos vitais sob as designações de sobrevivência, adaptação e enraizamento e os enxertos podem ser classificados em auto-enxertos, isoenxertos, aloenxertos e xenoenxertos.

Os aloenxertos constituem o transplante clínico comum em que uma pessoa doa um órgão a um indivíduo geneticamente diferente. Entre estes, podem ter-se em consideração, teoricamente, as glândulas endócrinas, como os ovários, a hipófise, a tiróide, o baço, o pâncreas e os testículos e, além disso, vasos sanguíneos, tecidos ósseos, medula óssea, nervos, tendões, pedaços de pele, córnea (ainda que não seja vascularizada, é tecido vital e, por isso, define-se sempre como um transplante). Mas, assumem um particular relevo os transplantes de órgãos integrais como o fígado e o rim, que se pode realizar ex vivo ou ex cadaver, o transplante de pulmão e o transplante de coração, que só pode ser feito, obviamente ex cadaver. Nestes incluem-se ainda, embora em menor escala no que diz respeito ao número de casos, a mão e a face, sendo que uma cirurgia recente incluiu o transplante da mandíbula, os dentes correspondentes e parte da língua.

Estou certo que isto é do conhecimento de V. Exa, sobretudo após a decisão que tomou. Contudo, pareceu-me importante realizar esta pequena revisão antes de avançar para o assunto sobre o qual lhe escrevo esta carta.
Considere os parágrafos anteriores apenas como uma pequena atenção com V.Exa, tal como espero da sua parte, quando me escreva de volta, a resposta com os seguintes dados, visto que a sua especialidade são os números:

Sabe quantos doentes com insuficiência renal são mantidos vivos através de hemodiálise, em Portugal? Nestes doentes, a única forma deixar de realizar hemodiálise para toda a vida, por muitos considerada "a prisão sem grades", é conseguir a doação de um rim (cadáver ou dador vivo), para que possa ser submetido a um transplante.

Sabe V. Exa quantos doentes com diabetes mellitus severa são mantidos vivos através de injecções diárias de insulina, cuja vida seria altamente melhorada com o transplante pancreático?

Sabe V. Exa. que, no que diz respeito aos candidatos a transplante de coração, fígado e medula óssea, que apresentam disfunção severa e terminal, estes morrem sem o transplante pois, diferentemente do rim, não é possível prolongar a vida de doentes que precisam de transplante hepático ou cardíaco?

Sabe ainda que uma das principais causas para o transplante de fígado é a paramiloidose, doença descrita pela primeira vez por Corino de Andrade, em 1952? Em Portugal, o maior foco da doença, existem mais de 600 famílias sob acompanhamento com mais de 2000 casos sintomáticos.

Senhor Ministro:

Desde a Antiguidade, que se encontram vestígios do interesse pelo conceito da utilidade clínica da transplantação de partes do corpo, substituindo partes definitivamente lesadas, por regiões anatómicas idênticas, provenientes de corpos saudáveis.

Em várias representações artísticas, encontra-se um dos milagres mais conhecidos dos dois irmãos medicos Cosme e Damião (300 d.C.), santos padroeiros da transplantação, que exerceram sempre a profissão sem cobrar quaisquer honorários.
Na imagem assiste-se à transplantação da perna de um negro (ou de um mouro) que acabara de falecer, substituindo a perna doente que se encontrava gangrenada.

Milagro de San Cosme y San Damian
Pedro Berruguete (1450-1504)
Museo de la Real Colegiata de San Cosme y San Damian de Covarrubias. Burgos. España.



Embora na esfera das crenças e lendas, acredita-se que foram estas histórias que levaram à vontade de outros fazerem novas abordagens e tentativas de sucesso para o tratamento dos doentes. E foi apenas, no século XX, com a aplicação da Ciclosporina, uma medicação imunosupressora, descoberta em 1972 por Jean-François Borel e apenas aprovada em 1983, para impedir o fenómeno de rejeição dos transplantes,que se melhorou, de forma notável, o prognóstico e a qualidade de vida dos doentes.
Como pode confirmer, a história é recente no que respeita ao transplante de órgãos ter deixado de ser um tratamento experimental e heróico para se converter numa terapia consolidada com uma percentagem maioritária de êxitos.

V.Exa., que tem tanto gosto pelos números, deveria saber que, em Portugal, até 2009, foram transplantados 25630 doentes e que, apenas antecedido pela vizinha Espanha, somos o país na União Europeia com maior número de dadores. Na relatório do Conselho Europeu, International Figures on Donation and Transplantation – 2010, Portugal é cotado como um país de referência neste campo. Não só pela evidência dos números, como pelo qualidades dos seus serviços.

Nos últimos anos, foram escritas teses universitárias em Portugal acerca da qualidade de vida dos doentes transplantados, abordagens psiquiátricas ou, como no meu caso, a importância dos cuidados de saúde oral neste tipo de doentes, uma vez que podem apresentar uma variedade de lesões orais devido à acção directa da medicação ou em consequência da imunosupressão induzida, onde se incluem, entre outras, infecções por bactérias, vírus e fungos, leucoplasias e lesões malignas. Isto é, em volta da transplantação, muito provavelmente com o seu desconhecimento, cimentaram-se àreas no domínio da multidisciplinariedade da saúde e da investigação (umas das outras grandes apostas do seu Governo…).

Tínhamos entrado numa era em que a Transplantação, como acto cirúrgico com elevada taxa de sucesso, não tinha como única métrica do sucesso apenas a sobrevivência do doente. Interessavam estratégias que contribuissem para a sobrevivência, mas também para o resultado geral e para a melhoria da qualidade de vida destes doentes.

Nem tudo eram rosas, mas havia um caminho que se percorria. Até que apareceu, perdoe-me, Vossa Excelência. E, à semelhança do que outros portugueses fizeram em momentos de elevado prestígio nacional, aparece sempre alguém que destrói a escola que tem vindo a ser construída.

Diga-me V.Exa. que tanto sabe de números:

O que foi feito das ideias do Infante D. Henrique, quando a nossa querida Escola Náutica em Paço de Arcos é remetida para a sobrevivência? Que apoio é dado aos grandes escritores de língua portuguesa que, inclusivamente, levaram o nosso Prémio Nobel da Literatura a viver em Lanzarote e António Lobo Antunes a afirmar, sem pudor, que não aceita “em Portugal qualquer espécie de honrarias por não dar ao meu país o direito de me julgar”? Até Camões só se inspirou para escrever Os Lusíadas numa caravela longe daqui.

Voltando à transplantação, não seria lógico que, já que somos a cauda da Europa em tantos outros sectores, não deveríamos investir em mantermo-nos nos primeiros lugares nos sectores em que já lá estamos? V. Exa. questionar-se se o país pode, efectivamente, sustentar o actual número de transplantes é uma declaração muito infeliz da sua parte, que estou disposto, como português cansado de dar tanto poder aos governos, a perdoar.
Para isso, terá, no entanto, de admitir que o senhor revela uma total falta de rumo e ambição para desenvolver o país, repetindo o eterno erro de Portugal: nunca apostar naquilo em que realmente se tornou competente e capaz.

É que, permita-me, Senhor Ministro, antes de saber de números e economia é preciso também saber de história. A grandeza da medicina de todos os tempos foi a de não aceitar a doença e a morte como naturais. Infelizmente, enquanto muitos aspectos da história progridem, outros não mudam.

Receba as minhas mais cordias saudações contribuintes,

Fernando Arrobas da Silva