Nunca se ouviu dizer que um dos maiores defeitos do nosso ensino provém exactamente da atenção dada ao “saber” em detrimento do “conhecer”?
O critério que preside à formação do espírito de um jovem é todo ele dominado por uma intenção instrutiva: primeiro, é preciso passar por uma fase em que cada um de nós recolhe a herança cultural que as gerações que nos precederam foram entesourando para nós. E, seguidamente à erudição, que cada um de nós recebe através dos mestres e dos compêndios (aquela parte que é património comum da humanidade – leis da matemática, regras da gramática, etc. …) deve juntar-se, ao longo da vida, a memória e a inteligência, a sensibilidade e a emoção.
Os Estados Unidos foram o primeiro país do Mundo a pôr em prática o processo de “leituras digeridas” (Reader’s digest). Portugal decidiu arranjar-se à moderna e nos tempos de Ensino Secundário não é conformável a obrigação e a imposição, na disciplina de Português, de ler as obras literárias.
A verdade é que a obrigação e imposição suscitam nos jovens um sentimento de rebelião traduzido numa vontade de fazer precisamente o contrário, conduzindo os alunos a refundirem-se em resumos, fotocópias e apontamentos. A repercussão do disfarce: Não desfrutam da obra e descuram em cultura.
Mais tarde, por vezes longe das salas de aula dos antigos Liceus, encontra-se outro sabor nos livros: anseia-se que se tenha mudado de página e que se tenha usufruído de tudo o que ela pudesse oferecer.
Lê-se com vontade; não com o intuito de dividir uma frase em orações, saber o tempo do verbo, identificar todas as figuras de estilo e “brilhar” em exame.
É mesmo verdade! Voltei a ler Os Maias! Interessei-me e, como se não bastasse, após terminar, documentei-me, investiguei e relembrei toda essa fulgurante época literária que foi o Realismo
Em vez de apreender, aprendi e agora partilho. O realismo foi uma corrente de expressão literária que surgiu em oposição ao movimento literário anterior – o Romantismo. Tratava-se de uma nova atitude perante a literatura e as artes plásticas e que era inspirada na vida real, no quotidiano, na crítica social ao ambiente vivido no seio da burguesia, à denúncia quanto à miséria vivida nos bairros populares e degradados.
Em contraponto com o Romantismo, que se definia como a apoteose do sentimento, exacerbando sentimentalismos utópicos, realçando excessivamente paixões amorosas chegando até a ser, quantas vezes, enfático e “piegas”, o Realismo, como dizia Eça de Queiroz, “é a anatomia do carácter”, era o apontar a dedo a realidade observada. O realismo procurava a realidade autêntica e não a realidade que, entretanto, estava deformada pelo mundo romântico.
Este movimento literário era também um movimento ambicioso. Não se limitando a descrever as realidades concretas do Homem e da sua vida quotidiana, preconizava uma ideia de mudança e de modificação da realidade social. Só que para que tal acontecesse, este movimento encerrava a convicção que para modificar a realidade era necessário descrevê-la com objectividade. Este método decorria do “positivismo” de Augusto Conte, que propunha uma rigorosa observação e experimentação como único caminho para chegar ao conhecimento da realidade.
Um dos grandes expoentes do Realismo foi o saudoso Eça de Queiroz. Eça chamou a si a glória e “ergueu um dos monumentos mais altos de Arte e cultura deste país”: Os Maias.
Os Maias constitui sobretudo uma análise social do quotidiano lisboeta do século XIX e encerra uma forte crítica da realidade vivida então. Num argumento que desde cedo ouvi o meu Pai nas suas ferozes discussões com os outros encarregados de educação dos meus amigos na escola, exemplo bem significativo desta crítica feroz é o facto de ser atribuída à personagem João da Ega (que muitos analistas consideram tratar-se do próprio Eça) a escrita de um ensaio literário As Memórias de um Átomo. Este (João da Ega), ao longo de Os Maias vem, permanentemente, sendo inquirido sobre para quando a conclusão desse livro ou ensaio. Até que mais tarde responde: “Estou à espera que o País aprenda a ler”. Esta frase célebre encerra em si mesma uma tremenda crítica à instrução pública, à educação e ao problema do analfabetismo. Curioso é – e isso é que vem ao caso – o quanto essa crítica é actual.
Incrível, como quando lemos Eça de Queiroz, e sabendo que tudo foi escrito há dois séculos atrás, tudo se mantém tão contemporâneo e, ainda hoje, a política, tal como a sociedade, precisa de uma mudança.
Será que Eça é que era demasiado evoluído ou nós demasiado atrasados?
Talvez os dois. Talvez por isso, em tempos de crise, o devêssemos relembrar mais.
3 comentários:
Parece-me que, um século antes ou um século depois, há coisas/atitudes que de tão intrínsecas ao ser humano, permanecem inalteradas... como se nenhum dia se tivesse passado!
Eça é um escritor intemporal... eu, que adorei os Maias, sou suspeita mas... ainda assim, acho que vale sempre a pena reler! :-) tenho a certeza de que vão ser bons momentos de leitura e reflexão!
Ola Sofia.
Obrigado pela visita e comentário. E ainda por ter adicionado o meu blog as suas paginas pessoais a serem seguidas.
Concordo integralmente. E experimente: voltar a ler os maias será extremamente agradavel, com um levantamente de pormenores outrora esquecidos ou que, na primeira leitura, sem dar por isso foram ultrapassados.
Ate breve,
Fernando Arrobas
Acho o seu artigo intocável com retoques romanticos de bom recorte mas ao entrar na atmosfera realista, bem mesmo na conclusão deste, faz o verniz estalar.
Se dúvidas ainda restam, a quem já leu Eça de Queiroz (quer seja na idade escolar ou posteriormente porque muitos há que leram e releram durante a época escolar e conseguiram descobrir uma parte da mensagem e do movimento que Eça representou, contrariando os questionaveis métodos de aprendizagem), em relação à diferença entre Eça e a nossa, presumo que se deva ao simples facto de não estar suficientemente atento ao dito atraso. Basta olhar à volta e registar o nosso comportamento em pormenores que não sendo dignos de registo dado o seu pouco mediatismo, são exemplos representativos e comprovam que de meros animais com algum censo e sensibilidade em alguns casos não passamos. Como todo o animal irracional que na teoria nao somos que vive por instinto de sobrevivencia, nao nos conseguimos diferenciar na prática. Afinal andamos aqui a sobreviver e ao salve-se quem puder na sempre designada selva. Nós próprios o dizemos. Nada que o boi almiscarado, a marta ou o papa-formigas não façam todo o santo dia. Quem sabe os ditos animais irracionais sao bem mais "humanos" nas suas relações sociais e em questões de sobrevivência do que nós! Evitemos qualquer comparação com o Eça!
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