sábado, 18 de junho de 2011

Voltei a ler Os Maias



Nunca se ouviu dizer que um dos maiores defeitos do nosso ensino provém exactamente da atenção dada ao “saber” em detrimento do “conhecer”?

O critério que preside à formação do espírito de um jovem é todo ele dominado por uma intenção instrutiva: primeiro, é preciso passar por uma fase em que cada um de nós recolhe a herança cultural que as gerações que nos precederam foram entesourando para nós. E, seguidamente à erudição, que cada um de nós recebe através dos mestres e dos compêndios (aquela parte que é património comum da humanidade – leis da matemática, regras da gramática, etc. …) deve juntar-se, ao longo da vida, a memória e a inteligência, a sensibilidade e a emoção.

Os Estados Unidos foram o primeiro país do Mundo a pôr em prática o processo de “leituras digeridas” (Reader’s digest). Portugal decidiu arranjar-se à moderna e nos tempos de Ensino Secundário não é conformável a obrigação e a imposição, na disciplina de Português, de ler as obras literárias.
A verdade é que a obrigação e imposição suscitam nos jovens um sentimento de rebelião traduzido numa vontade de fazer precisamente o contrário, conduzindo os alunos a refundirem-se em resumos, fotocópias e apontamentos. A repercussão do disfarce: Não desfrutam da obra e descuram em cultura.
Mais tarde, por vezes longe das salas de aula dos antigos Liceus, encontra-se outro sabor nos livros: anseia-se que se tenha mudado de página e que se tenha usufruído de tudo o que ela pudesse oferecer.

Lê-se com vontade; não com o intuito de dividir uma frase em orações, saber o tempo do verbo, identificar todas as figuras de estilo e “brilhar” em exame.
É mesmo verdade! Voltei a ler Os Maias! Interessei-me e, como se não bastasse, após terminar, documentei-me, investiguei e relembrei toda essa fulgurante época literária que foi o Realismo

Em vez de apreender, aprendi e agora partilho. O realismo foi uma corrente de expressão literária que surgiu em oposição ao movimento literário anterior – o Romantismo. Tratava-se de uma nova atitude perante a literatura e as artes plásticas e que era inspirada na vida real, no quotidiano, na crítica social ao ambiente vivido no seio da burguesia, à denúncia quanto à miséria vivida nos bairros populares e degradados.

Em contraponto com o Romantismo, que se definia como a apoteose do sentimento, exacerbando sentimentalismos utópicos, realçando excessivamente paixões amorosas chegando até a ser, quantas vezes, enfático e “piegas”, o Realismo, como dizia Eça de Queiroz, “é a anatomia do carácter”, era o apontar a dedo a realidade observada. O realismo procurava a realidade autêntica e não a realidade que, entretanto, estava deformada pelo mundo romântico.

Este movimento literário era também um movimento ambicioso. Não se limitando a descrever as realidades concretas do Homem e da sua vida quotidiana, preconizava uma ideia de mudança e de modificação da realidade social. Só que para que tal acontecesse, este movimento encerrava a convicção que para modificar a realidade era necessário descrevê-la com objectividade. Este método decorria do “positivismo” de Augusto Conte, que propunha uma rigorosa observação e experimentação como único caminho para chegar ao conhecimento da realidade.

Um dos grandes expoentes do Realismo foi o saudoso Eça de Queiroz. Eça chamou a si a glória e “ergueu um dos monumentos mais altos de Arte e cultura deste país”: Os Maias.
Os Maias constitui sobretudo uma análise social do quotidiano lisboeta do século XIX e encerra uma forte crítica da realidade vivida então. Num argumento que desde cedo ouvi o meu Pai nas suas ferozes discussões com os outros encarregados de educação dos meus amigos na escola, exemplo bem significativo desta crítica feroz é o facto de ser atribuída à personagem João da Ega (que muitos analistas consideram tratar-se do próprio Eça) a escrita de um ensaio literário As Memórias de um Átomo. Este (João da Ega), ao longo de Os Maias vem, permanentemente, sendo inquirido sobre para quando a conclusão desse livro ou ensaio. Até que mais tarde responde: “Estou à espera que o País aprenda a ler”. Esta frase célebre encerra em si mesma uma tremenda crítica à instrução pública, à educação e ao problema do analfabetismo. Curioso é – e isso é que vem ao caso – o quanto essa crítica é actual.

Incrível, como quando lemos Eça de Queiroz, e sabendo que tudo foi escrito há dois séculos atrás, tudo se mantém tão contemporâneo e, ainda hoje, a política, tal como a sociedade, precisa de uma mudança.
Será que Eça é que era demasiado evoluído ou nós demasiado atrasados?
Talvez os dois. Talvez por isso, em tempos de crise, o devêssemos relembrar mais.

3 comentários:

Sofia disse...

Parece-me que, um século antes ou um século depois, há coisas/atitudes que de tão intrínsecas ao ser humano, permanecem inalteradas... como se nenhum dia se tivesse passado!

Eça é um escritor intemporal... eu, que adorei os Maias, sou suspeita mas... ainda assim, acho que vale sempre a pena reler! :-) tenho a certeza de que vão ser bons momentos de leitura e reflexão!

Fernando Arrobas disse...

Ola Sofia.

Obrigado pela visita e comentário. E ainda por ter adicionado o meu blog as suas paginas pessoais a serem seguidas.

Concordo integralmente. E experimente: voltar a ler os maias será extremamente agradavel, com um levantamente de pormenores outrora esquecidos ou que, na primeira leitura, sem dar por isso foram ultrapassados.

Ate breve,

Fernando Arrobas

Anónimo disse...

Acho o seu artigo intocável com retoques romanticos de bom recorte mas ao entrar na atmosfera realista, bem mesmo na conclusão deste, faz o verniz estalar.
Se dúvidas ainda restam, a quem já leu Eça de Queiroz (quer seja na idade escolar ou posteriormente porque muitos há que leram e releram durante a época escolar e conseguiram descobrir uma parte da mensagem e do movimento que Eça representou, contrariando os questionaveis métodos de aprendizagem), em relação à diferença entre Eça e a nossa, presumo que se deva ao simples facto de não estar suficientemente atento ao dito atraso. Basta olhar à volta e registar o nosso comportamento em pormenores que não sendo dignos de registo dado o seu pouco mediatismo, são exemplos representativos e comprovam que de meros animais com algum censo e sensibilidade em alguns casos não passamos. Como todo o animal irracional que na teoria nao somos que vive por instinto de sobrevivencia, nao nos conseguimos diferenciar na prática. Afinal andamos aqui a sobreviver e ao salve-se quem puder na sempre designada selva. Nós próprios o dizemos. Nada que o boi almiscarado, a marta ou o papa-formigas não façam todo o santo dia. Quem sabe os ditos animais irracionais sao bem mais "humanos" nas suas relações sociais e em questões de sobrevivência do que nós! Evitemos qualquer comparação com o Eça!